Mal começamos a sair da cama e a circular pela ala, a história do que havia acontecido se espalhou como fogo num rastilho de cochichos.
– Eles tinham tido uma o quê? - perguntavam os que não haviam participado da coisa.
– Uma prostituta? No dormitório? Jesus!
– Não apenas uma prostituta, disseram os outros, mas uma bebedeira geral de cair. McMurphy planejava botá-la para fora às escondidas antes que o turno do dia viesse, mas não acordou.
– Ora, que espécie de lorota está querendo nos fazer engolir?
– Não é lorota nenhuma. Cada palavra é a absoluta verdade. Eu participei.
Os que haviam participado da noite começaram a contar com uma espécie de calmo orgulho e de espanto, da maneira como as pessoas contam que viram um grande hotel se incendiar ou uma represa estourar – muito solenes e cheios de respeito, porque os mortos ainda não foram nem contados – mas à medida que iam contando, os caras iam ficando menos solenes. Toda vez que a Chefona e os seus negros incansáveis descobriam uma coisa nova, tal como a garrafa vazia de xarope ou a frota de cadeiras de rodas estacionada no fim do corredor, como cavalos vazios num carrossel de parque de diversões, trazia de volta de repente, com clareza, uma outra parte da noite para ser contada aos que não haviam participado e para ser saboreada pelos que haviam. Todo mundo tinha sido levado para a enfermaria pelos crioulos, Crônicos e Agudos também, movendo-se em círculos numa confusão excitada. Os dois velhos Vegetais estavam afundados em suas espreguiçadeiras, piscando os olhos e mastigando as gengivas. Todo mundo ainda estava de pijama e de chinelos, exceto McMurphy e a garota; ela estava completamente vestida, a não ser pelos sapatos e pelas meias de nylon, que agora estavam penduradas no seu pescoço, e ele estava com os calções pretos com baleias brancas. Estavam sentados juntos num sofá, de mãos dadas. A garota cochilou de novo, e McMurphy estava encostado nela com um sorriso sonolento e satisfeito.
Nossa preocupação solene estava cedendo lugar, a despeito de nós, à alegria e bom humor. Quando a enfermeira encontrou a pilha de comprimidos que Harding havia derramado em cima de Sefelt e da garota, começamos a engasgar para segurar o riso, e na hora em que acharam o Sr. Turkle na rouparia, e o tiraram de lá piscando e gemendo de ressaca, estávamos às gargalhadas. A Chefona enfrentou o nosso bom humor sem exibir nem um traço do seu sorrisinho fixo; cada gargalhada lhe estava sendo enfiada pela garganta abaixo, até que pareceu que ela ia explodir a qualquer minuto, como uma bexiga.
McMurphy pendurou uma perna nua sobre o braço do sofá e puxou o gorro para baixo, para impedir que a luz lhe incomodasse os olhos avermelhados, e ficou espichando para fora a língua que parecia ter sido envernizada por aquele xarope. Aparentava estar enjoado e terrivelmente cansado, e pressionava as mãos fechadas contra as têmporas, bocejando, mas, por pior que se parecesse sentir, ainda mantinha o sorriso, e uma ou duas vezes chegou até a dar gargalhadas diante de algumas das coisas que a enfermeira ia descobrindo.
Quando a enfermeira entrou para telefonar para o edifício central para comunicar a demissão do Sr. Turkle, Turkle e Sandy aproveitaram para destrancar a grade, dar até logo para todo mundo e sair correndo pelo jardim, tropeçando e escorregando na grama molhada, cintilando sob o sol.
– Ele não trancou de novo – disse Harding para McMurphy. – Ande, vá. Vá atrás deles!
McMurphy gemeu e abriu um olho vermelho como um ovo choco. – Está brincando comigo? Não conseguiria nem passar a minha cabeça por aquela janela, quanto mais o meu corpo inteiro.
– Meu amigo, não creio que você compreenda.
– Harding, maldito seja você com esse seu palavrório; tudo que realmente compreendo é que ainda estou meio bêbado. E enjoado. Pra falar a verdade, acho que você também ainda está bêbado. E você, chefe, ainda está bêbado?
Eu disse que o meu nariz e o rosto estavam dormentes, se é que aquilo queria dizer alguma coisa.
McMurphy balançou a cabeça uma vez e tornou a fechar os olhos; enlaçou as mãos sobre o peito e afundou na cadeira, o queixo assentando sobre o pescoço. Estalou os lábios e sorriu como se estivesse cochilando.
– Cara - disse ele – todo mundo ainda está bêbado. Harding ainda estava preocupado. Continuou dizendo que a melhor coisa que McMurphy poderia fazer era vestir-se depressa, enquanto o Anjo de Misericórdia estava lá dentro falando de novo com o médico para comunicar as atrocidades que havia descoberto, mas McMurphy afirmou que não havia razão para nervosismos; ele não estava em situação pior que antes, estava?
– Já agüentei o máximo deles. – disse ele. Harding lançou as mãos para o ar e saiu dali, predizendo o juízo final.
Um dos crioulos viu que a grade estava destrancada e a trancou, entrou na Sala das Enfermeiras para pegar o grande livro achatado, voltou passando o dedo pela lista abaixo e murmurando o nome que lia em voz alta quando avistava o homem que correspondia a ele. A lista é em ordem alfabética às avessas, para confundir as pessoas, assim ele só chegou aos bês no fim. Deu uma olhada pela enfermaria sem tirar o dedo do último nome do livro.
– Bibbit. Onde está Billy Bibbit? – Os olhos dele estavam arregalados. Estava pensando que Billy havia fugido debaixo do seu nariz e que ia entrar pelo cano. - Quem viu Billy Bibbit fugir, seus malditos malucos?
Aquilo fez com que as pessoas se lembrassem de onde Billy estava; houve novamente cochichos e risos.
O crioulo voltou para a sala, e percebemos que estava contando à enfermeira. Ela bateu com o fone no gancho e saiu pela porta, furiosa, com o crioulo nos seus calcanhares; uma mecha de cabelo se havia soltado da touca branca e caía-lhe pelo seu rosto. Estava suando entre as sobrancelhas e sob o nariz. Exigiu que lhe disséssemos para onde o fugitivo havia ido. Recebeu como resposta um coro de gargalhadas, e seus olhos percorreram os homens.
– Então? Ele não fugiu, não é? Harding, ele ainda está aqui… na ala, não está? Digam-me. Sefelt, diga-me!
Seus olhos dardejavam a cada palavra, golpeando os rostos dos homens, mas eles estavam imunes ao seu veneno. Os olhos deles enfrentavam os dela; seus sorrisos zombavam do velho sorriso confiante que ela havia perdido.
– Washington! Warren! Venham comigo fazer uma ronda.
Levantamo-nos e os seguimos quando os três saíram, destrancando o laboratório, a Sala da Banheira, o consultório do médico… Scanlon cobriu a boca com a mão nodosa e murmurou:
– Ei, não vai ser uma boa para o velho Billy. – Todos nós concordamos. – E Billy não vai ser o único que vai sofrer com a coisa, agora que pensei bem; lembram que está lá dentro?
A enfermeira chegou à porta da Sala de Isolamento no fim do corredor! Nós nos empurramos para olhar, amontoando-nos e nos apertando para espiar por cima da Chefona e dos crioulos, enquanto ela destrancava e abria a porta. Estava escuro na sala sem janela. Houve um gritinho e uma agitação no escuro e a enfermeira estendeu a mão e acendeu a luz sobre Billy e a garota que piscavam ali naquele chão acolchoado, como duas corujas num ninho. A enfermeira ignorou o rugido de gargalhadas às suas costas.
– William Bibbit! – Ela tentou tanto fazer a voz soar fria e severa. – William… Bibbit!
– Bom dia, Srta. Ratched – disse Billy, sem fazer um único gesto para se levantar e abotoar o pijama. Ele segurou a mão da garota e sorriu. – Esta é a Candy.
A língua da enfermeira estalou na sua garganta ossuda.
– Oh, Billy, Billy Billy… estou tão envergonhada por você.
Billy não estava suficientemente acordado para corresponder muito à vergonha dela, e a garota mexia-se à sua volta, olhando debaixo do colchão, procurando as meias, movendo-se devagar e parecendo à vontade e disposta depois de ter dormido. De vez em quando ela parava o seu tatear sonhador, olhava para cima e sorria para o vulto gelado da enfermaria de pé ali, com os braços cruzados. Verificava então se o suéter estava abotoado e continuava a puxar a meia, presa entre o colchão e o piso de ladrilhos. Os dois se moviam como gatos gordos, saciados de leite morno, preguiçosamente sob o sol; imaginei que ambos também estivessem bem bêbados.
– Oh, Billy – disse a enfermeira, como se estivesse tão desapontada que fosse capaz de cair em prantos. – Uma mulher como essa. Uma reles! Vagabunda! Pintada…
– Cortesã? – sugeriu Harding. – Jezebel? – A enfermeira voltou-se e tentou detê-lo com os olhos, mas ele continuou. – Jezebel, não? Não? – Ele coçou a cabeça e continuou: – Que tal Salomé? Ela é notoriamente má. Talvez "zinha" seja a palavra que quer. Bem, só estou tentando ajudar.
Ela tornou a voltar-se para Billy. Ele se estava concentrando para ficar de pé. Ficou de joelhos, o traseiro no ar como uma vaca se levantando, então tomou impulso com uma das mãos, pôs um pé, depois o outro e se endireitou. Parecia satisfeito com o sucesso obtido, como se não tivesse nem se apercebido de nossas pessoas amontoadas ali na porta, mexendo com ele e o estimulando.
A gritaria e o riso redemoinhavam em torno da enfermeira. Seus olhos passaram de Billy e a garota para o nosso grupo. O rosto esmaltado de plástico se estava desmantelando. Ela fechou ós olhos e se esforçou para deter o seu tremor, concentrando-se. Sabia que aquele era o momento, estava acuada contra a parede. Quando seus olhos se abriram novamente, estavam muito pequenos e calmos.
– O que me preocupa, Billy – pude ouvir a mudança no tom de sua voz – é como a sua pobre mãe vai receber isso.
Ela obteve a reação que procurava. Billy se contraiu e levou a mão ao rosto como se tivesse sido queimado com ácido.
– A Sra. Bibbit sempre teve tanto orgulho da sua discrição. Eu sei que isto vai perturbá-la profundamente. Sabe como ela fica quando está perturbada. Billy, você sabe como a pobre coitada pode ficar doente. Ela é muito sensível. Especialmente no que diz respeito ao seu filho. Ela sempre falou de você com tanto orgulho. Ela sem…
– Nuh! nuh! – A boca de Billy se esforçava. Ele sacudiu a cabeça, suplicando-lhe. – p-p-precisa!
– Billy, Billy, meu pobre Billy – disse ela. – Sua mãe e eu somos velhas amigas.
– Não! – gritou ele. A sua voz arranhou as paredes brancas, nuas da Sala de Isolamento. Levantou o queixo de forma que ficou gritando para a luz de lua no teto. – N – n – não!
Tínhamos parado de rir. Observamos Billy se encolher no chão, a cabeça para trás, os joelhos para frente. Esfregou a mão na perna da calça verde. Tremia de pânico, como uma criança a quem se prometeu uma surra tão logo se consiga uma vara. A enfermeira tocou o ombro dele para consolá-lo. O toque o sacudiu como uma pancada.