Bem pelo canto do olho posso ver aquele rosto branco-esmaltado na Sala das Enfermeiras, oscilando sobre a mesa. Eu o vejo a se empenar e fluir, enquanto tenta retomar sua forma. Os outros também estão observando, embora tentem agir como se não estivessem. Estão tentando agir como se ainda estivessem com os olhos presos unicamente naquela TV desligada na nossa frente, mas qualquer um nota que estão lançando olhares de soslaio para a Chefona, ali atrás do seu vidro. Pela primeira vez, ela está do outro lado do vidro, experimentando contudo a sensação de como é que é ser observada quando o que você quer mais do que tudo é poder puxar uma cortina verde entre seu rosto e todos os olhos dos quais você não pode fugir.
Os internos, os crioulos, as enfermeiras, eles também a observam, esperando que ela vá pelo corredor quando chegar a hora da reunião do pessoal que ela mesma convocou; esperando para ver como é que vai agir, agora que é sabido que se pode fazer com que ela perca o controle. Ela sabe que a estão observando, mas não se move. Nem mesmo quando eles começam a se dirigir para a Sala do Pessoal sem ela. Percebo que toda a maquinaria dentro da parede está parada, como se estivesse esperando que ela se movesse.
Não há mais neblina em nenhum lugar.
De repente, lembro-me de que eu deveria limpar a Sala do Pessoal. Eu sempre limpo a Sala do Pessoal durante essas reuniões, tenho feito isso há anos. Mas agora estou com medo demais para sair da minha cadeira. O pessoal sempre me deixa limpar a sala porque não pensavam que eu não pudesse ouvir, mas agora que me viram levantar a mão quando McMurphy me disse para fazê-lo, será que não saberão que posso ouvir? Será que não descobrirão que estive ouvindo durante todos esses anos, ouvindo segredos que só eram para ser ouvidos por eles? Que é que eles farão comigo naquela Sala do Pessoal se souberem disso?
Entretanto, eles ainda esperam que eu esteja lá. Se não estiver, saberão com certeza que posso ouvir, estarão muito adiante de mim, pensando, "você vê, ele não está aqui limpando, isso não o prova?" É evidente o que deve ser feito…
Estou apenas recebendo a força total dos perigos aos quais nos expusemos quando deixamos que McMurphy nos atraísse para fora da neblina.
Há um crioulo encostado na parede perto da porta, os braços cruzados, a língua cor-de-rosa a dardejar de um lado para o outro sobre os lábios, observando-nos ali sen-tados diante do aparelho de TV. Seus olhos também dardejam de um lado para o outro, como a língua, e se detêm em mim, e vejo suas pálpebras de couro se levantarem levemente. Ele me observa durante muito tempo, e sei que está curioso a respeito da maneira como agi na sessão. Então ele se solta da parede com uma guinada brusca, rompendo o contato, vai até o armário de vassouras e traz um balde de água com sabão e uma esponja, levanta meus braços e pendura a alça do balde, como se estivesse pendurando uma chaleira num pau de uma lareira.
– Vam'bora, chefe – diz ele. – Levanta e vá cumprir seus deveres.
Eu não me movo. O balde balança no meu braço. Não dou um sinal sequer de ter ouvido. Ele está tentando me apanhar. Torna a me pedir para que eu me levante e, quando não me movo, revira os olhos para o teto e suspira, estende os braços, pega a minha gola e puxa um pouco, e eu me levanto. Enfia a esponja no meu bolso e aponta para a parede onde fica a Sala do Pessoal, e eu vou.
E enquanto estou andando pelo corredor com o balde, zuum, a Chefona passa por mim com toda a sua antiga velocidade, calma e força, e vira porta adentro. Aquilo me deixa curioso.
Do lado de fora, no corredor, sozinho, reparo como tudo está claro – não há neblina em lugar nenhum. Faz um pouco de frio no lugar por onde a enfermeira acabou de passar, e os tubos brancos no teto circulam uma luz congelada como bastões de gelo brilhantes, como serpentinas de refrigeradores armadas para brilharem brancas. Os bastões se estendem até a porta da Sala do Pessoal onde a enfermeira acabou de entrar, na extremidade do corredor – uma porta pesada de aço, como a da Sala de Choque, no Setor Um, exceto que nessa há números impressos, além de um pequeno olho mágico de vidro, na altura da cabeça, para permitir que o pessoal olhe para fora e veja quem está batendo. Quando me aproximo, noto que há luz a escoar-se para fora, através daquele olho mágico, luz verde, amarga como bílis. A reunião do pessoal está prestes a se iniciar, é por isso que há aquele escapamento verde; ele estará cobrindo todas as paredes e janelas quando a reunião estiver lá pela metade, para que eu o limpe com a esponja e esprema no balde, usando a água mais tarde para lavar os encanamentos do banheiro.
Limpar a Sala do Pessoal é sempre ruim. As coisas que eu já tive de limpar durante essas reuniões ninguém acreditaria; coisas horríveis, venenos manufaturados diretamente de poros de pele, e ácidos no ar, bastante fortes para derreter um homem. Eu já vi isso.
Estive em algumas reuniões em que as pernas da mesa se esticavam e se contorciam, e as cadeiras se embolavam e as paredes se roçavam umas contra as outras, até que se podia torcer o suor para fora da sala. Estive em reuniões em que ficavam falando de um paciente durante tanto tempo, que o paciente se materializava em carne e osso, nu, na mesa de café diante deles, vulnerável a qualquer idéia perversa que eles tivessem; eles o deixariam todo imundo numa sujeira terrível antes que tivessem terminado.
É por isso que eles me mantêm nas reuniões do pessoal, porque pode ser um negócio tão imundo que alguém tem de limpar, e uma vez que a Sala de Pessoal só fica aberta durante as reuniões, tem de ser alguém que eles pensam que não será capaz de contar para todo mundo o que está acontecendo. Sou eu. Venho fazendo isso há tanto tempo, passando a esponja, tirando a poeira, e limpando esta sala e a outra antiga de madeira, no prédio velho, que o pessoal, normalmente, nem nota minha presença; ando de um lado para outro cumprindo as minhas tarefas, e eles vêem através de mim, como se eu não estivesse lá – a única coisa de que sentiriam falta, se eu não aparecesse, seria da esponja e do balde de água a flutuar no espaço.
Mas desta vez, quando bato e a Chefona espia pelo olho mágico, ela olha bem para mim e leva mais tempo do que de hábito para destrancar a porta para que eu entre. O rosto dela voltou à forma usual, mais forte do que nunca, me parece. Todos os outros continuam pondo açúcar no café e apanhando cigarros, como costumam fazer antes de todas as reuniões, mas há uma tensão no ar. No começo, penso que é por minha causa. Depois, reparo que a Chefona ainda nem se sentou, ainda nem se deu ao trabalho de ir buscar uma xícara de café.
Ela me deixa passar pela porta e torna a me apunhalar com os olhos quando passo por ela.
Fecha a porta depois que entro e a tranca. Então, vira-se e olha fixa e furiosamente para mim por mais algum tempo. Sei que está desconfiada. Pensei que ela pudesse estar perturbada demais pela maneira como McMurphy a desafiou para prestar qualquer atenção em mim, mas não parece nada abalada. Ela está com a cabeça fria e se perguntando agora como foi que o Sr. Bromden ouviu aquele Agudo McMurphy pedindo-lhe que levantasse a mão naquela votação? Como foi que ele soube largar o esfregão e ir sentar-se com os Agudos diante daquele aparelho de TV? Nenhum dos outros Crônicos fez aquilo. Ela se está perguntando se não estaria na hora de fazer uma verificação no nosso Sr. Bromden.
Dou as costas para ela e me afundo no canto com a minha esponja. Levanto a esponja acima da cabeça de forma que todo mundo na sala possa ver como está coberto de lama verde e como estou trabalhando duro; então me inclino e esfrego com mais força do que nunca. Mas por mais duro que eu trabalhe e por mais que me esforce para agir como se não me desse conta de que ela está ali atrás, ainda posso senti-la de pé na porta e perfurando o meu crânio até que dentro de um minuto ela conseguirá penetrar nele. Estou quase a ponto de desistir e gritar e contar tudo a eles, se ela não tirar aqueles olhos de cima de mim.
Então ela se dá conta de que também está sendo observada – por todo o resto do pessoal. Da mesma maneira como está curiosa a meu respeito, eles estão curiosos a seu respeito, e o que está planejando fazer a respeito daquele ruivo lá na enfermaria. Estão observando para ver o que dirá sobre ele, e não se importam nem um pouco com um índio idiota qualquer, de quatro, no canto. Estão esperando por ela; assim, ela pára de olhar para mim, vai pegar uma xícara de café e se senta, mexe o açúcar com tanto cuidado que a colher nunca toca a borda da xícara.
É o médico quem toma a iniciativa.
– Bem, minha gente, que tal começarmos?
Ele sorri para os residentes que estão bebericando o café. Está tentando não olhar para a Chefona. Ela está sentada ali tão calada que o faz ficar nervoso e confuso. Tira os óculos, em seguida os põe de novo para olhar para o relógio, no qual começa a dar corda enquanto fala.
– Já se passaram 15 minutos. Já passou da hora de começarmos. A Srta. Ratched, como a maioria de vocês sabe, convocou esta reunião. Ela me telefonou antes da sessão da Comunidade Terapêutica e disse que em sua opinião McMurphy viria sem dúvida a constituir um distúrbio na ala. Incrivelmente intuitiva, levando em consideração o que aconteceu há alguns minutos, não acham?
Ele pára de dar corda no relógio porque já a deu toda e mais uma volta vai fazê-lo voar em pedaços por toda parte. Fica sentado ali, sorrindo para o relógio, tamborilando as costas da mão com os dedinhos rosados, esperando. Geralmente, mais ou menos a essa altura da reunião, ela assume o comando, mas ela nada diz.
– Depois de hoje – continua o médico – ninguém pode dizer que este homem com quem estamos lidando é um homem comum. Não, certamente que não. Que ele é um elemento perturbador, isto é óbvio. Assim… ah… conforme vejo, o nosso objetivo nessa discussão é decidir que atitude tomar com relação a ele. Creio que a enfermeira convocou esta reunião, corrija-me se estiver enganado, Srta. Ratched, para falar a respeito da situação e unificar a opinião do pessoal sobre o que deverá ser feito com McMurphy?
Ele lhe lança um olhar suplicante, mas ela ainda nada diz. Ergueu o rosto para o teto, procurando sujeiras, muito provavelmente, e não parece ter ouvido uma só palavra do que ele esteve dizendo.
O médico vira-se para a fileira de residentes do outro lado da sala: todos eles têm a mesma perna cruzada e a xícara de café sobre o mesmo joelho.