Cheswick já tem os olhos esbugalhados, e o que ele vê naquelas cartas não ajuda o seu estado.
– Calma, agora, não lambuze tudo; temos muito tempo muitos jogos diante de nós. Gosto de usar este meu baralho aqui porque leva pelo menos uma semana para que os outros jogadores cheguem ao ponto em que são capazes mesmo de ver a seqüência…
Está vestido com as calças e a camisa da colônia penal, desbotadas pelo sol a ponto de terem ficado da cor de leite aguado. Seu rosto, pescoço e braços são da cor de couro curtido avermelhado, por ter trabalhado muito tempo nos campos. Na cabeça, um gorro de motociclista e, dobrado no braço, uma jaqueta de couro. Usa botas cinzentas e empoeiradas, suficientemente pesadas para partir um homem ao meio com um pontapé. Afasta-se de Cheswick, tira o gorro e, batendo com ele na coxa, levanta uma nuvem de poeira. Um dos crioulos anda a sua volta com o termômetro, mas ele é rápido demais para eles; escapole, metendo-se entre os Agudos, e começa a andar de um lado para outro, apertando mãos, antes que o crioulo possa fazer boa pontaria. A maneira como ele fala, sua piscadela, sua conversa espalhafatosa, sua fanfarronice, tudo me lembra um vendedor de automóveis, ou um leiloeiro – ou um daqueles homens com o rosto pintado de preto, que a gente vê em palcos de espetáculos de variedades de segunda classe, lá na frente das suas bandeiras tremulantes, de pé com uma camisa listrada com botões amarelados, atraindo os rostos para fora da serragem como se fosse um ímã.
– O que aconteceu, sabem, pra dizer a pura verdade, foi que me meti num par de brigas na colônia penal e a corte me declarou um psicopata. E acham que eu vou discutir com a corte? Pois sim, podem apostar até o seu último dólar como não vou. Se isso me tira daqueles malditos campos de ervilha, serei o que quer que os coraçõezinhos deles desejarem, seja psicopata, cachorro louco ou lobisomem, porque o que quero é nunca mais ver uma enxada até o dia da minha morte. Agora, eles me dizem que um psicopata é um cara que briga, demais e trepa demais, mas eles não estão totalmente certos, não acham? Quero dizer, quem foi que já ouviu falar de um homem que tivesse trepado demais? Alô, companheiro, como é que eles chamam você? Meu nome é McMurphy e aposto dois dólares aqui e agora que você não é capaz de me dizer quantos pontos você tem nessa mão de pinocle, que está segurando, não olhe. Dois dólares; que é que acha? Porra, que droga, Sam! Será que não pode esperar meio minuto antes de me cutucar com esse seu maldito termômetro?
O recém-chegado fica parado, observando tudo por um momento, para ter uma visão completa da enfermaria.
De um lado da sala, os pacientes mais jovens, conhecidos como Agudos – porque os médicos acham que eles ainda têm possibilidade de ser curados – praticam queda-de-braço e truques com cartas em que somam e subtraem e tiram fora tantas para encontrar-se uma determinada carta. Billy Bibbit tenta aprender a enrolar um cigarro feito a mão, e Martini anda de um lado para outro, procurando coisas debaixo das mesas e das cadeiras. Os Agudos se movimentam um bocado. Contam piadas uns para os outros e riem em silêncio, cobrindo o rosto com as mãos (ninguém ousa nunca se soltar e rir, o pessoal inteiro do hospital apareceria com blocos de anotações e um monte de perguntas) e escrevem cartas com minúsculos lápis amarelos mastigados.
Eles se espionam uns aos outros. Às vezes, um homem diz alguma coisa a respeito de si mesmo que não tinha intenção de deixar escapar, e um de seus companheiros, na mesa onde ele falou, boceja, levanta-se e vai sorrateiramente até o grande livro de registro diário que fica junto da Sala das Enfermeiras e anota ali a informação que ouviu – de interesse terapêutico para todos. Pelo menos, a Chefona afirma que é para isso que o diário serve, mas eu sei que ela espera apenas obter informações suficientes para mandar um cara qualquer ser recondicionado no Prédio Principal, vistoriado lá por dentro da cabeça para resolver o problema.
O cara que escreveu a informação no diário, esse ganha uma estrela ao lado do seu nome na lista, e vai dormir tarde no dia seguinte.
Do lado oposto da sala, defronte aos Agudos, ficam os refugos da Liga, os Crônicos. Estes não estão no hospital para serem tratados, mas apenas para que sejam impedidos de andar por aí pelas ruas fazendo má propaganda do hospital. Os Crônicos estão internados para sempre, o pessoal do hospital reconhece. Os Crônicos estão divididos em Caminhantes, como eu, que ainda andam por aí, se forem mantidos alimentados, Circulantes e Vegetais. Na verdade, os Crônicos – ou a maioria de nós – não passam de máquinas com defeitos internos que não podem ser reparados, defeitos provocados por tantos anos que o cara passou dando cabeçadas, de tal forma que, quando o hospital o encontrou, ele estava sangrando apaticamente num terreno baldio qualquer.
Mas existem alguns Crônicos em quem o pessoal cometeu um par de erros há anos; alguns de nós que éramos Agudos, quando entramos, e fomos modificados. Ellis é um Crônico que quando entrou era um Agudo e foi definitivamente danificado quando eles carregaram demais em cima dele, naquela pútrida sala assassina de cérebros que os crioulos chamam de "Loja de Choque". Agora, ele está pregado na parede no mesmo estado em que eles o tiraram da mesa pela última vez, na mesma posição, os braços abertos, as palmas das mãos encolhidas, com o mesmo terror no rosto. Fica pregado na parede assim, como um troféu empalhado. Eles arrancam os pregos quando está na hora de comer ou na hora de levá-lo para a cama, ou ainda quando querem que ele saia dali, para que eu possa limpar a poça que se forme no local. Anteriormente, ele permaneceu tanto tempo num mesmo ponto, que a urina apodreceu o assoalho e as próprias vigas, e ele vivia caindo pelo buraco ali aberto para o andar inferior, dando todos os tipos de dores de cabeça lá embaixo, quando faziam a contagem de verificação.
Ruckly é um outro Crônico que entrou há poucos anos como um Agudo, mas com ele carregaram demais de uma maneira diferente: cometeram um erro numa das instalações de cabeça existentes lá. Ele estava sendo uma inconveniência geral por toda parte, chutando os crioulos, mordendo as pernas das estudantes de enfermagem, de forma que o levaram embora para ser consertado. Eles o amarraram àquela mesa e a última coisa que todo mundo viu dele foi pouco antes de eles fecharem a porta; ele piscou, no minuto antes de a porta se fechar, e disse aos crioulos, quando se iam afastando: "Vocês pagarão por isso, seus malditos moleques de piche."
E eles o trouxeram de volta para a enfermaria, duas semanas depois, careca e a frente do seu rosto uma ferida só, vermelha, melada, e tinha dois pininhos do tamanho de botões, costurados um em cima de cada olho. Pelos olhos, a gente pode ver como eles o fundiram por completo lá dentro; os olhos dele são esfumaçados, cinzentos e vazios por dentro como fusíveis queimados. Agora, ele não faz outra coisa o dia inteiro senão segurar uma velha fotografia diante daquele rosto destruído, revirando-a sem parar em seus dedos frios; a fotografia com todo aquele manusear ficou gasta e cinzenta, dos dois lados, como os seus olhos, de forma que não se pode mais dizer o que é que era.
Agora, o pessoal, bem, eles consideram Ruckly um de seus fracassos, mas não tenho certeza de como ele poderia estar melhor, se a instalação tivesse sido perfeita. As instalações que eles fazem, atualmente, em geral são bem sucedidas. Os técnicos adquiriram mais habilidade e experiência. Nada mais de buracos de botões na testa, nenhum corte mesmo – eles vão através das cavidades dos olhos. Às vezes, um cara vai até lá para fazer tratamento, deixa a enfermaria furioso e louco e xingando o mundo inteiro, e volta poucas semanas depois, com os olhos roxos, cobertos de hematomas, como se tivesse tomado parte numa briga de socos, e é a coisa mais doce, mais boazinha, mais bem comportada que jamais se viu. Ele talvez até vá para casa dentro de um mês ou dois, com um chapéu bem puxado sobre o rosto de um sonâmbulo, vagueando por um sonho simples e feliz. Um sucesso, eles dizem, mas digo que ele é apenas mais um robô para a Liga e estaria melhor se fosse um fracasso como Ruckly, sentado ali, revirando e babando em cima da fotografia. Ele nunca faz nada de muito diferente. O crioulo Pigmeu vez por outra consegue arrancar-lhe uma reação violenta quando, inclinando-se bem perto dele, pergunta: "Ei, Ruckly, que é que você imagina que a sua mulherzinha esteja fazendo na cidade hoje à noite?" A cabeça de Ruckly se levanta. A memória sussurra em algum lugar naquele aparelho danificado. Ele fica vermelho e as veias saltam num lado da testa. Isto o incha de tal maneira que ele mal pode emitir um som estrangulado na garganta. Uma baba começa a escorrer-lhe pelo canto da boca, de tal maneira ele força o maxilar para dizer alguma coisa. Quando finalmente chega ao ponto em que pode dizer alguma coisa, é um ruído baixo e estrangulado que se ouve, capaz de arrepiar a pele da gente: " Fffffffoda a mulher! Ffffffoda a mulher!", e desmaia direto por causa do esforço.
Ellis e Ruckly são os Crônicos mais jovens. O Coronel Matterson é o mais velho, um velho soldado petrificado de cavalaria da Primeira Guerra Mundial, que é dado a levantar, com a bengala, as saias das enfermeiras que passam, ou a ensinar uma espécie de história saída do texto na sua mão esquerda para qualquer um que queira ouvir. É o mais velho da enfermaria, mas não o que está aqui há mais tempo – a esposa dele o internou há apenas alguns anos, quando chegou ao ponto em que não tinha mais condições de cuidar dele.
Sou eu o que está aqui na enfermaria há mais tempo, desde a Segunda Guerra Mundial. Estou aqui há mais tempo que qualquer outra pessoa. Mais tempo que qualquer dos outros pacientes. A Chefona está aqui há mais tempo que eu.
Os Crônicos e os Agudos geralmente não se misturam. Cada grupo fica do seu lado na enfermaria, da maneira como os crioulos querem. Os crioulos dizem que é mais arrumado assim e dão a entender a todo mundo que é assim que querem que continue. Eles nos levam para lá depois do café e observam a separação dos grupos e movem a cabeça com satisfação. "É isso mesmo, senhores, é assim mesmo. Agora mantenham desse jeito."
Na realidade não há muita necessidade de eles dizerem coisa alguma, porque, a não ser por mim, os Crônicos não se movimentam para onde quer que seja, e os Agudos dizem que prefefem mesmo ficar lá no lado deles, alegando que o lado dos Crônicos fede mais que fralda suja. Mas eu sei que não é tanto o fedor que os mantém longe do lado dos Crônicos, mas o fato de que não gostam de ser lembrados de que ali está o que pode vir a acontecer com eles qualquer dia. A Chefona percebe esse medo e sabe como explorá-lo; ela deixará claro para um Agudo, sempre que ele se emburre: "Vocês, meninos, sejam bons meninos e cooperem com a política do pessoal que tem em mente a sua cura, ou vocês acabarão ali, naquele lado."