(Um cão de caça late acuado lá fora na neblina, correndo assustado e perdido porque não pode ver. Não há rastros no chão, exceto os que ele está deixando, e ele fareja em todas as direções com o seu focinho frio, que parece uma borracha, e não consegue acompanhar nenhum outro rastro a não ser o de seu próprio medo, que o vai penetrando, queimando por dentro como vapor.) Vai queimar-me exatamente desse jeito, finalmente contando tudo isto, sobre o hospital, e ela, e os caras - e sobre McMurphy. Estive calado durante tanto tempo, que agora isso vai jorrar para fora de mim como águas de uma enchente e se você pensa que o cara que está contando isto está exagerando e delirando, meu Deus; você acha que isto é horrível demais para ter acontecido realmente, isto é pavoroso demais para ser verdade! Mas, por favor. Ainda é difícil para mim manter a mente clara quando penso nisso. Mas é a verdade, mesmo que não tenha acontecido.
* * *
Quando a neblina se dissipa, permitindo que eu veja novamente, estou sentado na enfermaria onde passamos o dia. Eles não me levaram para a Sala do Choque desta vez. Lembro-me de que me tiraram da barbearia e me trancaram no isolamento. Não me lembro se tomei café. Provavelmente não. Posso trazer de volta à memória algumas manhãs que passei trancado no isolamento em que os crioulos ficavam trazendo porções repetidas de tudo – supostamente eram para mim, mas, em vez disso, eles comiam – até que os três tomavam café, enquanto eu continuava deitado ali naquele colchão fedendo a mijo, observando-os comerem ovos com torradas. Posso sentir o cheiro da gordura e ouvi-los a mastigar as torradas. Em outras manhãs, eles me trazem mingau frio e me obrigam a comê-lo sem ao menos ter posto sal.
Desta manhã simplesmente não me lembro. Eles me fizeram engolir um bocado dessas coisas que chamam de pílulas, de forma que nada sei até que ouvi a porta da enfermaria se abrir. Aquele abrir daquela porta significa que são pelo menos oito horas, significa que se passou talvez uma hora e meia durante a qual estive apagado naquela sala de isolamento, quando os técnicos poderiam ter entrado e instalado qualquer coisa que a Chefona tivesse ordenado e eu não teria a mais remota idéia do que fosse.
Ouço barulho na porta da enfermaria, bem lá no fim do corredor, fora do meu raio de visão. Aquela porta começa a se abrir às oito horas e se abre e fecha um milhão de vezes por dia, crac, clic. Todas as manhãs nós nos sentamos enfileirados de cada lado da enfermaria onde passamos o dia, armando quebra-cabeças depois do café, esperando ouvir uma chave girar na fechadura, e aguardando para ver o que é que está entrando. Não há muito mais que fazer. Às vezes, na porta, surge um jovem residente que chegou cedo de forma a poder ver como é que somos. Antes da Medicação. A M. é como eles dizem. Outras vezes, é uma esposa em visita, de saltos altos, com a bolsa apertada sobre a barriga. Ou então é uma ninhada de professoras primárias levadas em excursão por aquele idiota das Relações-Públicas, que está sempre batendo palmas com as mãos úmidas e dizendo o quanto ele se sente feliz porque os hospitais para doentes mentais eliminaram toda a crueldade ultrapassada: "Que atmosfera festiva, não acham?" Ele se alvoroça, batendo palmas, em volta das professoras que se reúnem num grupo compacto por medida de segurança. "Oh, quando eu penso em antigamente, na imundície, na comida ruim, e mesmo, sim, na brutalidade, oh, só então percebo, senhoras, que já percorremos um longo caminho vitorioso na nossa campanha!" Quem quer que entre pela porta é geralmente alguém desapontador, mas há sempre uma oportunidade de que seja diferente e, quando uma chave gira na fechadura, todas as cabeças se levantam, como se estivessem presas por cordéis.
Hoje de manhã a lingüeta da fechadura estala de maneira estranha; não é um visitante habitual que está na porta. A voz de um Acompanhante de Homem grita irritada e impaciente:
– Admissão, venham assinar por ele – e os crioulos vão.
Admissão. Todo mundo pára de jogar cartas e monopólio e se vira na direção da porta da enfermaria. Normalmente, eu estaria lá fora varrendo o corredor e veria quem eles estão admitindo, mas nesta manhã, como já expliquei, a Chefona me fez engolir um milhão de coisas, e não posso levantar-me da cadeira. Quase sempre, sou o primeiro a ver a Admissão. Observo o recém-chegado a arrastar-se pela porta adentro e deslizar ao longo da parede, ficar de pé apavorado até que os crioulos venham assinar por ele e levá-lo para a sala do chuveiro, onde o despem e o deixam tremendo, com a porta aberta, enquanto os três correm, sorrindo com malícia, para baixo e para cima pelos corredores, procurando a vaselina. "Nós precisamos daquela vaselina", dirão à Chefona, "para o termômetro". Ela olha de um para o outro: "Tenho certeza de que precisam", e lhes entrega um pote contendo no mínimo um galão, "mas prestem atenção, rapazes, não fiquem todos juntos lá dentro". Então, vejo dois, talvez os três lá dentro, naquela sala do chuveiro, com a Admissão, mergulhando e untando aquele termômetro na gordura até que fique coberto por uma camada do tamanho do seu dedo, murmurando: "É, isso aí, mamãe, é isso aí", e então eles fecham a porta e abrem todos os chuveiros até que não se possa ouvir mais nada senão o barulho da água contra o ladrilho verde. Estou lá fora, na maioria dos dias, e vejo isso assim.
Mas esta manhã tenho de ficar sentado na cadeira e apenas os escuto trazê-lo para dentro. Entretanto, ainda que eu não possa vê-lo, sei que não é uma Admissão comum. Não o ouço deslizar apavorado ao longo da parede e, quando eles lhe falam a respeito do chuveiro, ele não se submete simplesmente com um sim esquálido, ele lhes responde direto, numa voz alta e impudente, que já está mais do que muitíssimo limpo, obrigado.
– Eles me puseram no chuveiro, hoje de manhã, no tribunal, e ontem à noite na cadeia. E eu juro que acredito que me teriam lavado as orelhas durante a corrida do táxi até aqui, se tivessem podido encontrar um jeito. Pô, cara, parece que toda vez que eles me despacham para algum lugar, eu tenho de ser bem esfregado e lavado antes, depois e durante a operação. Estou ficando de um tal jeito que só o barulho da água me faz começar a juntar as minhas coisas. E saia de perto de mim com esse termômetro, Sam, e me dê um minuto pra dar uma olhada no meu novo lar; nunca estive num Instituto de Psicologia antes.
Os pacientes olham uns para os outros com expressões intrigadas, depois outra vez para a porta de onde a voz dele ainda está vindo. Falando mais alto do que seria preciso, se os crioulos estivessem em qualquer lugar perto dele. Ele fala como se estivesse longe, muito acima deles, falando para baixo, como se estivesse velejando 50 jardas acima, gritando para aqueles lá embaixo, no chão. Fala como um homem grande. Eu o ouço a aproximar-se pelo corredor e parece grande pela maneira de andar, e ele não desliza mesmo, tem chapa de ferro nos saltos e os faz estalar no chão como ferraduras. Surge na porta e pára, enfia os polegares nos bolsos, as botas bem separadas, e fica ali, com os outros olhando para ele.
– Bom dia, amigos.
Há um morcego de papel da festa das bruxas pendurado num cordão acima de sua cabeça; ele levanta o braço e dá um piparote no morcego, que começa a girar.
– Dia de outono bem agradável – continua ele. Fala um pouco do jeito como papai costumava falar, voz alta, selvagem mesmo, mas não se parece com papai; papai era um índio puro de Columbia – um chefe – e duro e brilhante como uma coronha de arma. Esse cara é ruivo, com longas costeletas vermelhas, e um emaranhado de cachos saindo por baixo do boné, está precisando de dar um corte no cabelo há muito tempo, e é tão robusto quanto papai era alto, queixo, ombros e peito largos, um largo sorriso diabólico, muito branco, e é duro de uma maneira diferente do que papai era, mais ou menos do jeito que uma bola de beisebol é dura sob o couro gasto. Uma cicatriz lhe atravessa o nariz e uma das maçãs do rosto, no lugar em que alguém o acertou numa briga, e os pontos ainda estão no corte. Ele fica de pé ali, esperando, e, quando ninguém toma a iniciativa de lhe responder alguma coisa, começa a rir. Ninguém é capaz de dizer exatamente por que ele ri; não há nada de engraçado acontecendo. Mas não é da maneira como aquele Relações-Públicas ri, é um riso livre e alto que sai da sua larga boca e se espalha em ondas cada vez maiores até ir de encontro às paredes por toda a ala. Não como aquele riso do gordo Relações-Públicas. Este som é verdadeiro. Eu me dou conta de repente de que é a primeira gargalhada que ouço há anos.
Ele fica de pé, olhando para nós, balançando-se para trás nas botas, e ri e ri. Cruza os dedos sobre a barriga sem tirar os polegares dos bolsos. Vejo como suas mãos são grandes e grossas. Todo mundo na ala, pacientes, pessoal e o resto, está pasmo e abobalhado diante dele e da sua risada. Não há qualquer movimento para fazê-lo parar, nenhuma iniciativa para dizer alguma coisa. Ele então interrompe a risada, por algum tempo, e vem andando, entrando na enfermaria. Mesmo quando não está rindo, aquele ressoar do seu riso paira a sua volta, da mesma maneira com o som paira em torno de um grande sino que acabou de ser tocado – está em seus olhos, na maneira como sorri, na maneira como fala.
– Meu nome é McMurphy, companheiros, R. P. McMurphy, e sou um jogador idiota. – Ele pisca o olho e canta um pedacinho de uma canção: -… "e sempre eu ponho… meu dinheiro… na mesa" – e ri de novo.
Vai andando até um dos jogos de cartas, vira para cima as cartas de um dos Agudos * , com um dedo grosso e pesado, olha de soslaio para a mão e sacode a cabeça:
– Sim senhor, foi pra isso que vim para este estabelecimento, para trazer pra vocês, coleguinhas, alegria e divertimento na mesa de jogo. Não havia mais ninguém naquela Colônia Penal de Pendleton para tornar os meus dias interessantes, assim eu requeri uma transferência, entenderam? Precisava de algum sangue novo. Que horror! Olha só o jeito como esse cara segura as cartas, mostrando pra todo mundo no quarteirão! Vou esfolar vocês, crianças, como carneirinhos.
Cheswick junta e apanha as suas cartas. O homem ruivo estende a mão para que Cheswick a aperte.
– Oi, companheiro; que é que você está jogando? Pinocle * ? Jesus, não é de admirar que não se importe em mostrar as suas cartas. Vocês não têm aqui um baralho comum? Bem, aqui vamos nós, eu trouxe comigo o meu baralho, só por via das dúvidas. Ele tem algo mais do que cartas figuradas… e vejam as fotografias, hum? Cada uma é diferente. Cinqüenta e duas posições.