E de repente ninguém mais o está vaiando. Os braços dele começam a inchar, e as veias saltam à superfície. Ele fecha os olhos e seus lábios se esticam e descobrem os dentes. A cabeça se inclina para trás, e tendões saltam para fora como cordas espiraladas, descendo do pescoço pesado pelos dois braços, até as mãos. Todo o seu corpo estremece com o esforço, enquanto tenta levantar uma coisa que ele sabe, uma coisa que todo mundo sabe que ele não pode levantar.
Mas, por apenas um segundo, quando sentimos o cimento estremecer sob os nossos pés, pensamos, Dor Deus, ele bem que é capaz de fazê-lo.
Então a respiração dele explode e ele cai para trás frouxamente de encontro à parede. Há sangue nas alavancas onde ele rasgou as mãos. Ele arqueja por um minuto encostado na parede, com os olhos fechados. Não há nenhum som exceto o da sua respiração ofegante; ninguém diz nada.
Ele abre os olhos e olha em volta para nós. Um a um, ele vai olhando para todos – até para mim – e então remexe nos bolsos tirando todos os vales que ganhou nos últimos dias no pôquer. Inclina-se sobre a mesa e tenta separá-los, mas suas mãos estão paralisadas, transformadas em garras vermelhas e ele não consegue mover os dedos.
Finalmente, atira o maço inteiro no chão – provavelmente 40 ou 50 dólares de cada homem. Vira-se para sair da Sala da Banheira. Pára na porta e olha para trás, para todo mundo de pé ali.
– Mas, seja como for, eu tentei – diz ele. – Porra, pelo menos isso eu realmente fiz, não fiz?
Sai e deixa aqueles pedaços de papel manchados no chão para quem queira separá-los.
* * *
Um médico visitante, coberto de teias de aranhas no crânio amarelo, está falando para os jovens internos na Sala do Pessoal.
Eu passo por ele varrendo.
– Oh, e o que é isto aqui? – Ele me lança um olhar como se eu fosse alguma espécie de inseto. Um dos residentes aponta para as orelhas, indicando que sou surdo, e o médico visitante continua.
Empurro a vassoura até ficar cara a cara com um cartaz grande e lindo que o Relações-Públicas trouxe quando estava uma névoa tão espessa que eu não o vi. A fotografia é de um cara pescando com um anzol em algum lugar nas montanhas, parece com as Ochocos, perto de Paineville – a neve nos picos, aparecendo acima dos pinheiros, longos troncos de álamos enfileirados na beirada da corrente, tufos de azedinha espalhados em manchas de um verde vibrante. O cara está lançando a isca num tanque atrás de uma rocha. Não é lugar para uma mosca, é um lugar para uma única minhoca num anzol número seis – ele faria melhor se deixasse a isca flutuar sobre aquelas cascatas mais abaixo na correnteza.
Há um caminho que desce entre os álamos, e empurro a vassoura pelo caminho adentro e me sento numa pedra e torno a olhar para fora, através da moldura, para o médico visitante que continua falando com os residentes. Posso vê-lo quando bate num ponto qualquer na palma da mão com o dedo, mas não consigo ouvir o que ele diz por causa do ruído da correnteza fria e espumante por entre as rochas. Posso sentir o cheiro da neve no vento quando ele sopra para baixo, vindo dos picos. Posso ver tocas de toupeiras corcoveando sob o mato e os pastos de búfalos. É um lugar realmente agradável para esticar as pernas e se descontrair.
A gente se esquece – se não se senta e faz o esforço de se lembrar -, esquece de como era no antigo hospital. Eles não tinham lugares agradáveis como este nas paredes, por onde se pode subir e entrar. Não tinham TV ou piscina ou galinha duas vezes por mês. Nada tinham além de paredes e cadeiras, camisas-de-força das quais a gente levava horas dando duro para sair de dentro. Aprenderam muita coisa desde então. "Andou-se num longo caminho", diz o Relações-Públicas de cara de lua. Eles fizeram com que a vida parecesse muito agradável, com tintas, decorações e cromados no banheiro. "Um homem que quisesse fugir de um lugar agradável como esse", diz o gordo Relações-Públicas, "puxa, teria de ter algo de errado nele".
Lá fora, na Sala do Pessoal, a autoridade visitante está apertando os cotovelos e tremendo como se tivesse frio, enquanto responde às perguntas que os residentes lhe fazem. Ele é magro e descarnado, e as roupas esvoaçam em torno de seus ossos. Ele fica ali, apertando os cotovelos e tremendo. Talvez também sinta o vento frio da neve que vem dos picos.
* * *
Está ficando difícil localizar minha cama à noite, tenho de engatinhar por aí, sobre mãos e joelhos, tateando sob os estrados até achar meus pedaços de chicletes colados. Ninguém se queixa da neblina. Agora eu sei por que: mesmo ruim como é, a gente pode deslizar lá para dentro dela e sentir-se em segurança. É isso que McMurphy não consegue compreender – o nosso desejo de estar em segurança. Ele fica tentando arrastar-nos para fora da neblina, para fora em terreno aberto onde seríamos alvos fáceis de serem atingidos.
* * *
Há um carregamento de órgãos congelados que veio cá para baixo – corações, rins, cérebros e coisas assim. Posso ouvi-los a rolar para dentro do frigorífico através da calha de transporte de carvão. Um sujeito sentado na sala, em algum lugar que não posso ver, está falando que alguém lá de cima da Enfermaria dos Perturbados se matou. O velho Rawler. Cortou as duas bolas e sangrou até a morte, sentado bem ali na latrina, no banheiro. Meia dúzia de pessoas ali dentro, junto com ele, não se apercebeu daquilo até que ele caísse morto no chão.
O que faz com que as pessoas fiquem tão impacientes eu não consigo imaginar, tudo o que ele tinha de fazer era esperar.
* * *
Sei como é que eles fazem funcionar a máquina de neblina. Nós tínhamos um pelotão inteiro que costumava pôr em funcionamento máquinas de neblina em volta dos aeroportos, no exterior. Sempre que o Serviço Secreto desconfiava que poderia haver um bombardeio, ou se os generais tinham alguma coisa secreta que queriam experimentar – sem que ninguém visse, tão bem escondido que nem os espiões da base pudessem notar o que estava acontecendo – eles punham neblina no campo.
É um equipamento simples: pega-se um compressor comum e faz-se com que ele sugue toda a água de um tanque, e um óleo especial de um outro tanque, que se misturam no compressor, e da haste negra na extremidade da máquina começa a sair uma nuvem branca de neblina que pode cobrir um campo de pouso inteiro em 90 segundos. A primeira coisa que eu vi quando desci na Europa foi a neblina fabricada com essas máquinas. Havia alguns interceptadores logo atrás do nosso avião, e tão logo tocamos o chão o pessoal da neblina ligou as máquinas. Podíamos olhar em volta do avião, limpamos as janelas e observamos os jipes que rebocavam as máquinas mais para perto do avião e vimos a neblina ir saindo em rolos, até atravessar o campo de pouso e se grudar nas janelas como algodão molhado.
A gente encontrava o caminho de saída do avião seguindo um apito de juiz que o tenente ficava tocando, que soava como o grasnado de um ganso. Tão logo a gente saía da cabina não conseguia mais ver além de um metro em qualquer direção. Tinha-se a impressão de que se estava sozinho no campo de pouso. Você estava a salvo do inimigo, mas se sentia terrivelmente sozinho. Os sons morriam e se dissolviam e não se podia ouvir ninguém do resto do grupo, nada além do grasnado do apito que saía de uma brancura suave e macia, tão espessa que o corpo da gente simplesmente se dissolvia nela logo abaixo do cinto; além da camisa marrom e da fivela de metal, nada se via que não fosse o branco, como se da cintura para baixo a gente também se tivesse transformado em neblina.
E então um sujeito qualquer, tão perdido quanto você, de repente aparecia bem diante de seus olhos, e com mais clareza do que você jamais viu o rosto de um homem em toda a sua vida. Seus olhos faziam tanto esforço para ver através da neblina que, quando alguma coisa realmente aparecia, cada detalhe era muitas vezes mais claro que o normal, tão claro que os dois tinham de desviar o olhar. Quando um homem aparecia, você não queria olhar para a cara dele e ele não queria olhar para a sua, porque é tão doloroso ver alguém com tanta clareza que é como olhar dentro da pessoa, mas ainda assim você também não queria desviar o olhar e perdê-lo por completo. Você tinha uma escolha: podia esforçar-se e olhar para as coisas que apareciam na sua frente na neblina, por mais doloroso que fosse, ou podia relaxar os nervos e se perder.
Quando eles usaram a máquina de neblina na enfermaria pela primeira vez, uma que compraram dos excedentes do Exército, e a esconderam nos escaninhos no prédio novo antes que nos mudássemos, eu ficava olhando para qualquer coisa que surgisse da neblina por tanto tempo e com tanto esforço quanto me fosse possível, para ficar informado das coisas, do mesmo jeito como eu costumava fazer quando eles soltavam neblina nos aeroportos da Europa. Não havia ninguém soprando um apito para indicar o caminho, não havia corda alguma onde me segurar. Assim, fixar meus olhos em alguma coisa era a única maneira que eu encontrava de não me perder. Às vezes, mesmo assim, eu me perdia, ia fundo demais, na tentativa de me esconder, e todas as vezes que eu fazia isso, parecia que eu sempre ia parar no mesmo lugar, na mesma porta de metal com a fileira de rebites, como olhos, e sem nenhum número. Da mesma maneira que o quarto atrás da porta me atraía para si, não importando o quanto eu me esforçasse para ficar longe dele; como se a corrente gerada pelos demônios que havia naquele quarto fosse conduzida por um radioemissor no meio da neblina e me puxasse de volta através dela como um robô. Eu vagueava pela neblina durante dias, com medo de nunca mais ver nada, e então aquela porta estava lá, abrindo-se para mostrar o colchão que cobria o outro lado para deter os sons, os homens de pé, enfileirados como zumbis entre fios brilhantes de cobre e luzes fluorescentes pulsantes, e o movimento brilhante da eletricidade em arcos voltaicos. Eu tomava o meu lugar na fila e esperava minha vez de ir à mesa. A mesa tinha a forma de um cruz, com as sombras de uma multidão de homens assassinados impressas nelas, silhuetas de pulsos e tornozelos sob as tiras de couro, esverdeadas de suor e uso, uma silhueta de um pescoço e de uma cabeça a subir para uma faixa prateada que lhe fica atravessada na testa. E um técnico nos controles ao lado da mesa, que erguendo o olhar de seus botões para a fileira, aponta para mim com uma luva de borracha. "Espere, eu conheço aquele grandalhão filho da puta ali… é melhor marretar logo sua cabeça ou pedir mais reforços. Ele é um caso terrível, é de sair arrebentando tudo.