O colarinho da camisa do Relações-Públicas é tão apertado que faz o rosto dele inchar quando ri, e está rindo a maior parte do tempo, nunca sei de que, rindo alto e depressa como se quisesse poder parar mas sem conseguir. E o rosto está inchado, vermelho e redondo como uma bola, um rosto pintado nela. Ele não tem cabelos, nem no rosto nem na cabeça, de que se possa falar; parece que é como se outrora tivesse colado um pouco de cabelo, mas ficava escorregando e entrando pelos punhos e pelos bolsos da camisa dele, e descendo pelo colarinho. Talvez seja por isso que ele mantém o colarinho tão apertado, para que os pedacinhos de cabelo fiquem do lado de fora.
Talvez seja por isso que fica rindo tanto, porque consegue manter todos os pedacinhos do lado de fora.
Ele conduz essas excursões – mulheres sérias de casacos de malha, balançando a cabeça para ele à medida que vai mostrando quantas coisas melhoraram com o correr dos anos. Mostra a TV, as grandes poltronas de couro, os bebedouros higiênicos; depois, todos eles vão tomar café na Sala das Enfermeiras. Às vezes, ele vem sozinho e apenas fica de pé no meio da enfermaria e bate com as palmas das mãos (a gente pode ouvir como elas estão molhadas), bate palmas duas ou três vezes até que se grudem, então as mantém juntas, sob uma das bochechas, como se estivesse rezando, e começa a girar. Gira, gira e gira ali no meio do chão, olhando selvagem e freneticamente para a TV, os quadros novos nas paredes, bebedouro. E rindo.
O que é que ele vê de tão engraçado nunca nos deixa saber, e a única coisa engraçada que vejo é ele rodando, rodando e rodando ali, como um brinquedo de borracha – se a gente o empurrar para a frente, ele tem um peso no fundo, e logo balança de volta para o lugar, e recomeça a girar. Ele nunca olha para o rosto dos homens…
Dez e quarenta, quarenta e cinco, cinqüenta, os pacientes transitam entrando e saindo de entrevistas na ET ou OT ou PT, ou em salinhas estranhas em algum lugar onde as paredes nunca têm o mesmo tamanho e os assoalhos não são nivelados. Os sons da maquinaria à sua volta atingem uma velocidade de cruzeiro constante.
A enfermaria zumbe da maneira como ouvi uma fábrica de tecido zumbir uma vez, quando o time de futebol jogou com a escola secundária na Califórnia. Depois de uma boa temporada, os promotores da cidade estavam tão orgulhosos e exaltados que pagavam para que fôssemos de avião até a Califórnia para disputar um campeonato de escolas secundárias com o time de lá. Quando chegamos à cidade tivemos de visitar uma indústria local qualquer. Nosso treinador era um daqueles dados a convencer as pessoas de que o atletismo era educativo por causa do aprendizado proporcionado pelas viagens, e em todas as viagens que fazíamos ele carregava com o time para visitar fábricas de laticínios, fazendas de plantação de beterraba e fábricas de conservas, antes do jogo. Na Califórnia foi uma fábrica de tecido. Quando entramos na fábrica, a maior parte do time deu uma olhada rápida e saiu para ir sentar-se no ônibus e jogar pôquer em cima das malas, mas eu fiquei lá dentro num canto, fora do caminho das moças negras que corriam de um lado para outro entre as fileiras de máquinas. A fábrica me colocou numa espécie de sonho, todos aqueles zumbidos e estalos a chocalhar de gente e de máquinas sacudindo-se em espasmos regulares. Foi por isso que eu fiquei quando todos os outros se foram, por isso e porque aquilo me lembrou de alguma forma os homens da tribo que haviam deixado a aldeia nos últimos dias para ir trabalhar na trituradora de pedras para a represa. O padrão frenético, os rostos hipnotizados pela rotina… eu queria ir com o time, mas não pude.
Era de manhã, no princípio do inverno, e eu ainda usava a jaqueta que nos deram quando ganhamos o campeonato – uma jaqueta vermelha e verde com mangas de couro e um emblema com o formato de uma bola de futebol bordado nas costas, dizendo o que havíamos vencido – e ela estava fazendo com que uma porção de moças negras olhassem. Eu a tirei, mas elas continuaram olhando. Eu era muito maior naquela época.
Uma das moças afastou-se de sua máquina e olhou para um lado e para o outro das passagens entre as máquinas, para ver se o capataz estava por perto, depois veio até onde eu estava. Perguntou se íamos jogar na escola secundária naquela noite e me disse que tinha um irmão que jogava como zagueiro para eles. Falamos um pouco a respeito de futebol e coisas assim, e reparei como o rosto dela parecia indistinto, como se houvesse uma névoa entre nós dois. Era a lanugem do algodão pairando no ar.
Falei-lhe a respeito da lanugem. Ela revirou os olhos e cobriu a boca com a mão, para rir, quando eu lhe disse como era parecido com olhar o seu rosto numa manhã enevoada de caça ao pato. E ela disse: "Agora me diga para que é que você quereria nesse bendito mundo estar sozinho comigo lá fora, numa tocaia de pato?" Disse-lhe que ela poderia tomar conta da minha arma, e as moças começaram a rir com a boca escondida atrás das mãos na fábrica inteira. Eu também ri um pouco, vendo como havia parecido inteligente. Ainda estávamos conversando e rindo quando ela agarrou meus pulsos e os apertou com as mãos. Os traços do seu rosto de repente se acentuaram num foco radioso; vi que ela estava aterrorizada por alguma coisa.
– Leve-me – disse ela num murmúrio. – Leve-me mesmo, garotão. Para fora desta fábrica aqui, para fora desta cidade, para fora desta vida. Me leva para uma tocaia de pato qualquer, num lugar qualquer. Num outro lugar qualquer. Hem, garotão, hem?
O seu rosto negro, bonito, cintilava ali na minha frente. Fiquei boquiaberto, tentando pensar em alguma maneira de responder. Ficamos juntos, enlaçados daquela maneira durante alguns segundos; então o som da fábrica saltou num arranco, e alguma coisa começou a puxá-la para trás, afastando-a de mim. Um cordão em algum lugar que eu não via se havia prendido naquela saia vermelha florida e a puxava para trás. As unhas dela foram arranhando minhas mãos e, tão logo ela desfez o contato comigo, seu rosto saiu novamente de foco, tornou-se suave e escorregadio como chocolate derretendo-se atrás daquela neblina de algodão que soprava. Ela riu e girou depressa deixando que eu visse a perna amarela, quando a saia subiu. Lançou-me uma piscadela de olho por sobre o ombro enquanto corria para sua máquina, onde uma pilha de fibra deslizava da mesa para o chão; ela apanhou tudo e saiu correndo sem barulho pela fileira de máquinas para enfiar as fibras num funil de enchimento; depois, desapareceu do meu ângulo de visão virando num canto.
Todos aqueles fusos bobinando e rodando, e lançadeiras saltando por todo lado, e carretéis fustigando o ar com fios, paredes caiadas e máquinas cinza-aço e moças com saias floridas saltitando para a frente e para trás e a coisa toda tecida como uma teia, com linhas brancas corrediças que prendiam a fábrica, mantendo-a unida – aquilo tudo me marcou e de vez em quando alguma coisa na enfermaria o traz de volta à minha mente.
Sim. Isto é o que eu sei. A enfermaria é uma fábrica da Liga. Serve para reparar os enganos cometidos nas vizinhanças, nas escolas e nas igrejas, isso é o que o hospital é. Quando um produto acaba, volta para a sociedade lá fora – todo reparado e bom como se fosse novo, às vezes melhor do que se fosse novo, traz alegria ao coração da Chefona; algo que entrou deformado, todo diferente, agora é um componente em funcionamento e bem-ajustado, um crédito para todo esquema e uma maravilha para ser observado. Observe-o se esgueirando pela terra com um sorriso, encaixando-se em alguma vizinhançazinha, onde estão escavando valas agora mesmo, por toda a rua, para colocar encanamento para a água da cidade. Ele está contente com isso. Ele finalmente está ajustado ao meio-ambiente…
Puxa, nunca vi algo capaz de superar a mudança que houve em Maxwell Taber desde que ele voltou daquele hospital; com umas marcas roxas em volta dos olhos, um pouco mais magro, e, sabe de uma coisa?, ele é um outro homem. Deus, a moderna ciência americana…
E a luz fica acesa na janela de seu porão, muito depois da meia-noite, toda noite, à medida que os Elementos de Reação Retardada, que os técnicos instalaram, emprestam habilidades ligeiras aos seus dedos quando ele se inclina sobre o vulto entorpecido da esposa, das suas garotinhas de apenas quatro e seis anos, o vizinho com quem joga boliche às segundas-feiras; ele os ajusta como foi ajustado. É assim que eles espalham o sistema.
Quando a corda dele finalmente acaba, depois de um número de anos preestabelecido, a cidade o ama carinhosamente e o jornal publica seu retrato ajudando os escoteiros, no ano passado, no Dia de Limpeza do Cemitério, e a esposa dele recebe uma carta do diretor da escola secundária, dizendo como Maxwell Taber era uma figura inspiradora para a juventude da nossa maravilhosa comunidade.
Até embalsamadores, normalmente uns pão-duros, contadores de tostão, ficam influenciados. "É, olhe só para ali: o velho Max Taber era um bom sujeito. Que é que você acha de usarmos aquele peso, 30 mais caro, sem cobrar nenhuma taxa extra da esposa dele? Não, que diabo, vamos fazê-lo por conta da casa."
Um Desfecho bem sucedido como esse é um produto que traz alegria ao coração da Chefona e faz a propaganda da sua arte e da indústria inteira de maneira geral. Todo mundo fica satisfeito com o Desfecho.
Mas uma Admissão é uma história diferente. Mesmo a Admissão mais bem comportada está destinada a precisar de algum trabalho para entrar na rotina e, também, nunca se pode dizer quando poderia entrar justamente aquele determinado tipo, que é suficientemente livre para estragar as coisas à direita e à esquerda, realmente fazer um diabo de uma confusão e constituir uma ameaça a toda a organização bem lubrificada do esquema. E, como já expliquei, a Chefona fica realmente furiosa se qualquer coisa impede seu esquema de funcionar direitinho.
Antes do meio-dia eles estão novamente na máquina de neblina, mas não a ligaram a toda; não está tão espessa assim, posso ver com algum esforço. Um dia desses, deixarei de me esforçar e me deixarei levar por completo, me perderei na neblina como alguns dos Crônicos se perderam, mas por enquanto estou interessado nesse cara novo – quero ver como é que ele vai reagir à Sessão de Grupo que vem aí.
Aos dez para uma, a neblina se dissolve por completo e os crioulos estão dizendo aos Agudos para desimpedir o aposento para a sessão. Todas as mesas são levadas para fora da enfermaria e para a sala da banheira, do outro lado do corredor. "Desocupem o chão", diz McMurphy, como se estivéssemos querendo dar uma festa de dança.