Enfia o gorro na cabeça e volta para a sua revista de histórias em quadrinhos, do outro lado da sala. Todos os Agudos se entreolham boquiabertos. Por que é que ele está berrando com eles! Ninguém o esteve aporrinhando. Ninguém lhe pediu coisa alguma desde que descobriram que ele estava tentando comportar-se para impedir que seu período de internamento fosse aumentado. Agora, estão surpreendidos com o modo como ele acabou de explodir com Hardihg e não conseguem entender a maneira como ele apanha a revista de cima da cadeira, senta-se e a segura no alto bem perto do rosto – ou para impedir as pessoas de olharem para ele ou para não ter de ficar olhando para as pessoas.
Naquela noite, durante o jantar, ele pede desculpas a Harding, e diz que não sabe o que o fez ficar tão furioso na biblioteca. Harding diz que talvez tenha sido a sua esposa; que ela freqüentemente enerva as pessoas. McMurphy, ainda sentado, olhando fixo para o café, diz:
– Não sei, cara. Eu só a conheci hoje de tarde. Assim não pode ser ela que me tem dado sonhos ruins nesta maldita semana que passou.
– Ora, Si - nhô McMurphy! – exclama Harding tentando falar como o rapazinho residente que assiste às sessões. – O senhor simplesmente tem de nos contar seus sonhos. Ah, espere até que eu pegue o meu lápis e um bloco. – Harding está tentando ser engraçado para aliviar a tensão provocada pelo pedido de desculpas. Ele pega um guardanapo e uma colher e faz de conta que vai tomar notas. – Agora diga, o que, exata-mente foi que viu nesses… ah… sonhos?
McMurphy continua sério.
– Não sei, cara. Nada além de rostos, acho… apenas rostos.
Na manhã seguinte, Martini está atrás do painel de controles na Sala da Banheira, brincando como se fosse um piloto de jato. O jogo de pôquer pára, para que os homens riam de sua encenação.
– Eeeeeeaaah HOOoomeerr. Controle de terra para o ar, controle de terra para o ar: objeto à vista do quatro – zero – dezesseis – mil – parece ser um míssil inimigo. Prosseguir imediatamente! Eeeahhoo mmmm.
Gira um botão, empurra uma alavanca para frente e se recosta no assento da aeronave. Ele aciona uma manivela até "Força Total", no lado do painel, mas não sai uma gota sequer de água dos bocais espalhados em todo o quadrado de ladrilhos a sua frente. Não usam mais hidroterapia. Ninguém ligou a água. O equipamento cromado, novo em folha, e o painel de aço nunca foram usados. Exceto pelos cromados, o painel e o chuveiro são iguais aos equipamentos de hidroterapia que eles usavam no antigo hospital, há 15 anos: bocais capazes de alcançar partes do corpo de qualquer ângulo, um técnico com um avental de borracha de pé do outro lado da sala, manipulando os controles do painel, dizendo quais os bocais a lançarem o jato, para onde, com que força, a que temperatura – o chuveiro aberto ora suavemente e tranqüilizador, ora forte, penetrante como uma agulha – você pendurado ali, entre os bocais, por tiras de lona, encharcado, frouxo e enrugado, enquanto o técnico se divertia com o brinquedo.
– Eee aa ooo oo mmm … Ar para o controle de terra, ar para o controle de terra! Míssil avistado; vindo para o meu raio de visão agora…
Martini se abaixa, fecha um dos olhos e faz pontaria através do anel de bocais.
– Na mira! Pronto… Apontar… Fo…
As mãos dele saltam para trás, soltando-se do painel, e ele fica de pé, bem ereto, o cabelo esvoaçando e os olhos arregalados para o chuveiro, tão transtornado e assustado que todos os jogadores de cartas se viram nas cadeiras para ver também o que ele viu – mas nada vêem ali, exceto as fivelas de metal penduradas entre os bocais nas tiras duras de lona bem nova.
Martini vira-se e olha direto para McMurphy. Para mais ninguém.
– Você não os viu? Não viu?
– Vi quem, Mart? Não vejo nada.
– Naquelas tiras? Não viu? McMurphy olha para o chuveiro.
– Não. Não vejo nada.
– Espere um minuto. Eles precisam que você os veja – diz Martini.
– Dane-se, Martini, já disse que não posso vê-los! Compreende? Não vejo diabo de coisa nenhuma!
– Ah – diz Martini. Ele balança a cabeça concordando e dá as costas para o chuveiro. – Bem, eu também não os vi. 'Tava só brincando com você.
McMurphy corta o baralho e o embaralha com um movimento brusco.
– Bem… eu não gosto desse tipo de brincadeira, Mart. – Ele corta para embaralhar de novo, e as cartas voam para todos os lados, como se o baralho tivesse explodido entre suas mãos trêmulas.
Eu me lembro de que foi novamente numa sexta-feira, três semanas depois que fizemos a votação sobre a TV, e todo mundo que podia andar foi levado para o Prédio Um, para, conforme eles nos disseram, uma abreugrafia, para tuberculose, mas eu sei que foi para verificar se o equipamento de todo mundo estava funcionando direito.
Ficamos sentados num banco, numa longa fileira, num corredor que leva a uma porta que tem uma placa onde se lê RAIOS X. Perto dessa sala há uma porta onde está escrito OTORRINO. Ali eles examinam a nossa garganta no inverno. Do outro lado do corredor há um outro banco, e ele leva àquela porta de metal. Com a fileira de rebites. E nada escrito nela. Dois homens estão cochilando no banco, entre dois crioulos, enquanto outra vítima lá dentro está recebendo tratamento, e posso ouvi-la a gritar. A porta se abre para dentro com o som de uma rajada de vento, e posso ver os tubos cintilantes na sala. Eles vêm empurrando a vítima para fora, e eu me agarro ao banco onde me encontro sentado para não ser sugado por aquela porta. Um crioulo e um branco arrastam um dos homens do banco e o botam de pé, ele oscila e cambaleia sob o efeito das drogas que tomou. Geralmente nos dão comprimidos vermelhos antes do Choque. Eles o empurram porta adentro, e os técnicos o seguram pelos braços. Por um segundo vejo que ele percebe para onde o levaram, e enrijece os calcanhares contra o cimento do chão, tentando impedir que o empurrem para a mesa. Então a porta é fechada, paft, com o metal batendo no acolchoado e não o vejo mais.
– Homem, que é que eles estão fazendo lá dentro? – pergunta McMurphy a Harding.
– Lá? Ora, é isso mesmo, não é? Você ainda não teve o prazer. Pena. É uma experiência que nenhum ser humano devia deixar de conhecer. – Harding cruza os dedos na nuca e se recosta para olhar para a porta. – Aquilo é a Sala de Choque, de que eu lhe falei há algum tempo, amigo, a TE, Terapia de Eletrochoque. Aquelas almas afortunadas lá dentro estão recebendo uma viagem à Lua de graça. Não, pensando bem, não é completamente gratuita. Você paga pelo serviço com células cerebrais em vez de dinheiro, e todo mundo tem simplesmente bilhões de células cerebrais disponíveis. Você não sentirá falta de algumas delas. – Ele franze o cenho para o homem sozinho, sentado no banco. – Clientela não muito grande, hoje, ao que parece, nada como as multidões do ano passado. Mas, enfim, c'est la vie, as modas vêm e vão. E eu creio que estamos testemunhando o crepúsculo da TE. A nossa querida Chefona é uma das poucas com coragem para defender uma grande e antiga tradição faulkneriana no tratamento dos refugos da sanidade: Cremação de Cérebro.
A porta se abre. Uma cama Gurney sai zumbindo, sem ninguém para empurrá-la, faz a curva em duas rodas e desaparece, soltando fumaça, pelo corredor acima. McMurphy observa levarem o último para dentro e fecharem a porta.
– O que eles fazem é – McMurphy ouve um momento – levar um cara qualquer lá para dentro e ligar eletricidade através do cérebro dele?
– Esta é uma forma concisa de descrevê-lo.
– Mas para que, diabo?
– Ora, para o bem do paciente, é claro. Tudo que é feito aqui é para o bem do paciente. Você às vezes pode ter a impressão, por ter vivido apenas na nossa ala, de que o hospital é um vasto mecanismo eficiente que funcionaria muito bem se o paciente não fosse obrigado a viver nele, mas isso não é verdade. A TE não é usada sempre como medida punitiva, como a nossa enfermeira usa, e tampouco é puro sadismo por parte do pessoal. Uma quantidade considerável de supostos irrecuperáveis foi trazida de volta ao contato com choques, exatamente como uma quantidade de outros foi ajudada com lobotomia. O tratamento de choque, tem algumas vantagens; é barato, rápido, inteiramente indolor. Ele simplesmente induz um acesso.
– Que vida! – geme Sefelt. – Dão comprimidos a alguns de nós para acabar um acesso, dão choque no resto para começar outro.
Harding inclina-se para a frente para explicar a McMurphy.
– Foi assim que começou: dois psiquiatras estavam visitando um matadouro, Deus sabe por que razão perversa, e observavam o gado ser morto por uma pancada, entre os olhos, dada com uma marreta. Notaram que nem todos morriam. Alguns caíam no chão num estado que se assemelhava muito a uma convulsão epilética. "Ah, azim"', diz o primeiro médico. "Izo é exatamente o que nós precisamos para os nozos pacientes: o azesso induzido." O colega concordou, é claro. Sabia-se que homens saindo de uma convulsão epilética normalmente se inclinavam a ficar mais calmos e mais tranqüilos durante algum tempo, e que os casos violentos, completamente fora de contato com a realidade, eram capazes de ter conversas racionais depois de uma convulsão. Não, ninguém sabia por quê; e ainda não sabem. Mas era óbvio que, se um acesso pudesse ser induzido em não epiléticos, poderiam advir grandes benefícios. E ali, diante deles, estava um homem induzindo acessos regularmente, e com uma serenidade notável.
Scanlon diz que pensava que o cara usava um martelo em vez de uma bomba, mas Harding nem toma conhecimento do que ele diz e continua com a explicação.
– Uma marreta é o que o açougueiro usava. E foi com relação a isso que o colega tinha certas reservas. Afinal, um homem não era uma vaca. E depois, a marreta poderia errar o alvo e quebrar um nariz. Até arrancar uma porção de dentes. Então como é que eles ficariam com o alto custo do tratamento dentário? Se iam bater na cabeça de um homem, precisavam usar alguma coisa mais segura e mais precisa do que uma marreta; finalmente se decidiram pela eletricidade.
– Jesus, não pensaram que poderiam causar algum dano? O público não fez um escarcéu por causa disso?
– Não creio que você tenha compreendido bem o público, meu amigo; neste país, quando alguma coisa não funciona, a maneira mais rápida de consertá-la é sempre a melhor.