– Estou cansado – é o que ele diz.
– Sei que você está cansado, Pete, mas não posso fazer bem nenhum a você em ficar me angustiando e me desgastando por causa disso. Você sabe que não posso.
Pete flutua da mesma maneira que o velho Coronel.
Aí vem Billy Bibbit, do mesmo modo como Pete veio. Eles estão todos desfilando para um último olhar. Sei que Billy não pode estar a mais de um metro de distância, mas parece tão pequeno que dá a impressão de estar afastado um quilômetro. Seu rosto está virado para mim como se fosse de um mendigo, precisando de muito mais do que qualquer pessoa lhe possa dar. Sua boca move-se como a de uma bonequinha.
– E até quando eu a pedi em ca – casamento, eu estraguei tudo. Eu disse: "Querida, você quer ca – ca – ca – ca -ca -… até que a garota caiu na gar – gargalhada.
A voz da enfermeira, não consigo ver de onde vem:
– Sua mãe me falou a respeito dessa moça, Billy. Aparentemente, ela era muito inferior a você. Que é que você acha que havia nela que o assustava tanto, Billy?
– Eu estava ap – ap – apaixonado por ela.
Eu também nada posso fazer por você, Billy. Você sabe disso. Nenhum de nós pode. Você tem de compreender que tão logo um homem sai para ajudar alguém, ele se torna desprotegido. Ele tem de ser esperto, Billy. Você devia saber disso tão bem como todo mundo. Que é que eu poderia fazer? Não posso curar sua gagueira. Não posso apagar as marcas de gilete dos seus pulsos, ou as queimaduras de cigarros das costas das suas mãos. Não lhe posso dar uma outra mãe. E enquanto a enfermeira estiver montada em você desse jeito, esfregando o seu nariz nas suas fraquezas até que aquele pouco de dignidade que ainda lhe resta se acabe e você se resuma a um nada de humilhação, eu também nada posso fazer sobre isso. Em Anzio, vi um companheiro meu amarrado a uma árvore a 50 metros de mim, berrando por um pouco dágua, o rosto empolado no sol. Eles queriam que eu tentasse sair para ajudá-lo. Eles me teriam cortado pela metade, lá naquela fazenda.
Tire seu rosto daí, Billy.
Eles continuam a passar desfilando.
É como se cada rosto fosse uma placa com uma daquelas "Eu sou Cego" que os gringos acordeonistas em Portland penduram no pescoço, só que estas placas dizem "estou cansado", ou "estou com medo", ou "estou morrendo por causa de um fígado de bêbado", ou ainda "estou amarrado com equipamentos e com pessoas me empurrando o tempo todo". Posso ler todas as placas, não faz qualquer diferença à maneira como as letras ficam minúsculas. Alguns dos rostos estão olhando em volta uns para os outros, e poderiam ler o rosto do outro, se quisessem, mas qual é o sentido? Os rostos passam na neblina voando como confete.
Estou mais no fundo, como nunca estive. É assim que é estar morto. Acho que é assim que é ser um Vegetal; você se perde na neblina. Você não se move. Eles alimentam seu corpo até que finalmente ele pára de comer; então eles o queimam. Não é tão ruim. Não há dor. Não sinto quase nada a não ser um pouco de frio que eu imagino que vá passar com o tempo.
Vejo o meu oficial superior prendendo aviso no quadro de boletim: que é que devemos vestir hoje. Vejo o Ministério dos Negócios Interiores dos EUA caindo, sobre a nossa pequena tribo, com uma máquina trituradora de cascalho.
Vejo papai vir abaixando-se para fora de uma vala e reduzir a marcha para tentar pontaria em um grande gamo com uma galhada de seis pontas, que corre aos saltos entre os cedros. Um tiro atrás do outro saem do cano da espingarda, levantando poeira por toda parte em volta do gamo. Saio da vala atrás de papai e abato o gamo com o meu segundo tiro, justo no momento em que ele começava a subir o penhasco. Sorrio para papai.
Eu nunca vi o senhor perder um tiro assim antes, papai.
A vista se foi, filho. Não consigo manter a mira. O que eu via na minha arma ainda há pouco estava tremendo como um cachorro a cagar caroços de pêssego.
Papai, estou lhe dizendo: aquela cachaça de cacto do Sid vai fazer você ficar velho antes da hora.
Um homem que bebe aquela cachaça de cacto do Sid, menino, já está velho antes da hora. Vamos estripar aquele animal logo, antes que as moscas o devorem.
Isto não está acontecendo agora. Vocês vêem? Nada há que se possa fazer quanto a um acontecimento do passado como esse.
Olhe aqui, meu velho…
Ouço murmúrios, crioulos.
Olhe ali aquele velho idiota, o Vassoura, acabou dormindo.
É isso aí, chefe Vassoura, é isso mesmo. Fique dormindo e não se meta em confusões. Assimmm.
Não estou mais com frio. Acho que acabei conseguindo. Estou longe, onde o frio não me pode alcançar. Posso ficar aqui fora para sempre. Não estou mais com medo. Eles não me podem alcançar. Só as palavras me alcançam, e elas vão desaparecendo.
Bem… uma vez que Billy decidiu abandonar a discussão, alguém mais tem um problema que queira apresentar ao grupo?
Para falar a verdade, dona, de fato há uma coisa…
Este é McMurphy. Ele está muito longe. Ainda está tentando arrancar as pessoas para fora da neblina. Por que é que ele não me deixa em paz?
– … se lembra daquela votação que fizemos há um dia ou coisa assim… a respeito do horário da TV? Bem, hoje é sexta-feira e pensei em apresentar a proposta de novo, só para ver se mais alguém arranjou um pouco de coragem.
– Sr. McMurphy, o objetivo desta sessão é a terapia, terapia de grupo, e não estou certa de que essas queixas mesquinhas…
– Sim, sim, pro inferno com isso, já ouvimos tudo isso antes. Eu e alguns dos outros caras decidimos…
– Um momento, Sr. McMurphy, deixe-me fazer uma pergunta ao grupo: alguém aqui acha que o Sr. McMurphy está, talvez, impondo demais seus desejos pessoais sobre alguns de vocês? Estive pensando que talvez ficassem mais satisfeitos se ele fosse transferido para uma outra enfermaria.
Ninguém se manifesta durante um minuto. Então alguém diz:
– Deixe que ele faça a votação, por que não deixa? Por que fica querendo mandá-lo para a Enfermaria dos Perturbados só porque ele quer fazer uma votação? Que é que há de tão errado em trocar o horário?
– Ora, Sr. Scanlon, se é que me lembro bem, o senhor se recusou a comer durante três dias até que permitimos que ligasse a televisão às seis horas em vez de às seis e meia.
– Um homem tem de ver as notícias do mundo, não tem? Deus, eles podiam bombardear Washington e levaria uma semana antes que soubéssemos.
– Sim? E como é que se sente com relação a abrir mão de suas notícias do mundo para ver um bando de homens a jogar beisebol?
– Não podemos ter as duas coisas, hem? Não, acho que não. Bem, que diabo… não creio que eles nos bombardeiem esta semana.
– Vamos deixar que ele faça a votação, Srta. Ratched.
– Muito bem. Mas eu acho que há provas suficientes do quanto ele está incomodando alguns dos pacientes. Que é que o senhor está propondo, Sr. McMurphy?
– Estou propondo uma nova votação a respeito de assistir à TV à tarde.
– O senhor está certo de que mais uma votação vai satisfazê-lo? Temos coisas mais importantes…
– Vai me satisfazer. Eu apenas gostaria de ver quais desses caras têm um pouco de coragem e quais não têm.
– É este tipo de conversa, Dr. Spivey, que faz com que eu me pergunte se os pacientes não ficariam mais felizes se o Sr. McMurphy fosse transferido.
– Deixe que ele faça a votação, por que não deixa?
– Certamente, Sr. Cheswick. A votação está sendo apresentada ao grupo agora. Um levantar de mãos seria adequado, Sr. McMurphy, ou o senhor vai insistir em escrutínio secreto?
– Quero ver as mãos. Quero ver as mãos que não se levantam também.
– Todo mundo a favor de trocar o horário da televisão para a tarde levante a mão.
A primeira mão que se levanta, posso dizer de quem é, é a de McMurphy, por causa das ataduras onde aquelas alavancas do painel o feriram quando tentou levantá-lo. E então lá longe, ladeira abaixo, eu as vejo, outras mãos que se erguem para fora da neblina. É como… se aquela mão vermelha de McMurphy se estivesse enfiando na neblina e descendo até lá embaixo e arrastando os homens para cima pelas mãos, arrastando-os estonteados para o campo aberto. Primeiro, uma, então uma outra, logo a seguinte. Seguindo por toda a fileira de Agudos, ele os arrasta para fora da neblina até que saiam dela. Todos os 20 levantam as mãos não apenas para ver TV, mas contra a Chefona, contra a tentativa de ela mandar McMurphy para a Enfermaria dos Perturbados, contra a maneira como ela falou e agiu e os derrotou durante anos.
Ninguém diz uma palavra. Posso sentir como todo mundo está estarrecido, tanto os pacientes quanto o pessoal. A enfermeira não consegue entender o que aconteceu; ontem, antes que ele tentasse levantar aquele painel, não havia mais do que quatro ou cinco homens que poderiam ter votado. Mas, quando ela fala, não deixa que transpareça em sua voz o quanto está surpreendida.
– Eu conto apenas 20, Sr. McMurphy.
– Vinte? Bem, por que não? Vinte somos todos nós aqui – a voz dele pára, quando percebe aonde ela quer chegar. – Ora, espere só uma droga dum minuto, dona…
– Temo que sua proposta tenha sido derrotada.
– Espere só um porra dum minuto!
– Há 40 pacientes na enfermaria, Sr. McMurphy. Quarenta pacientes, e apenas 20 votaram. O senhor tem de ter maioria para modificar uma norma da enfermaria. Acho que a votação está encerrada.
As mãos estão descendo pela sala. Todos sabem que foram derrotados. Estão tentando esgueirar-se de volta para a segurança da neblina. McMurphy continua de pé.
– Bem, puta que me pariu! Está querendo me dizer que é assim que vai trapacear? Contando os votos daqueles caras velhos ali também?
– Não explicou o procedimento de votação a ele, doutor?
– Temo que… a maioria seja indispensável, McMurphy. Ela está certa. Ela está certa.
– A maioria, Sr. McMurphy; está no regulamento.
– E creio que a maneira de modificar o maldito regulamento é com uma votação por maioria. De todas as titicas de galinha que eu já vi na minha vida, por Deus, esta ganha disparado!
– Sinto muito, Sr. McMurphy, mas vai encontrar escrito no regulamento se quiser que eu…
– Então é assim que vocês controlam essa merda de democracia… diabo do inferno!
– O senhor parece tão perturbado, Sr. McMurphy. Ele parece perturbado, doutor? Quero que tome nota disso.