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Fico deitado imóvel e respiro mais devagar, esperando para ver se alguma coisa vai acontecer. Está escuro, meu Deus, e os escuto a deslizar de um lado para o outro, lá fora, com os sapatos de borracha; por duas vezes espiam lá dentro do dormitório e passam a luz da lanterna sobre todo mundo. Mantenho os olhos fechados e fico acordado. Ouço um gemido alto vindo lá de cima dos Perturbados, lúú lúú lúúú - instalaram os arames num cara qualquer, para apanhar sinais de código.

– Ah, uma cerveja, acho, pra longa noite que temos pela frente – ouço um dos crioulos cochichar para o outro. Os sapatos de borracha saem guinchando em direção à Sala das Enfermeiras, onde fica a geladeira. – Quer uma cerveja, coisinha bonita com marca de nascença? Para a longa noite que temos pela frente?

O cara lá de cima se cala. O som abafado dos aparelhos nas paredes fica cada vez mais baixo, até que se transforma num zumbido de nada. Não se ouve um ruído por todo o hospital – exceto por um ronco surdo e arrastado em algum lugar lá no fundo, nas entranhas do prédio, um ruído que eu nunca notara antes – muito parecido com o som que a gente ouve quando está parado bem tarde da noite no topo de uma represa hidrelétrica. Força brutal, implacável, baixa.

O crioulo gordo está de pé ali fora no corredor onde posso vê-lo, olhando em volta para um lado e outro e rindo sozinho. Vem andando na direção da porta do dormitório, devagar, esfregando as palmas cinzentas molhadas nos sovacos. A luz vinda da Sala das Enfermeiras lança a sua sombra na parede do dormitório grande como um elefante, vai ficando menor à medida que vem andando até a porta do dormitório e olha para dentro. Ele torna a dar uma risadinha e destranca a caixa de fusíveis junto da porta e estende a mão lá para dentro. "É isso mesmo, queridinhos, durmam bem."

Torce um trinco, e o chão inteiro começa a deslizar para baixo, afastando-se dele, que está de pé na porta, descendo para o interior do prédio como uma plataforma num silo com elevadores!

Nada além do chão do dormitório se move, e estamos deslizando para longe das paredes e da porta e das janelas da ala com uma rapidez danada – camas, mesinhas de cabeceiras, e tudo. O equipamento – provavelmente uma engenhoca de roda denteada e trilho em cada canto do poço – é bem lubrificado e silencioso como a morte. O único ruído que ouço é a respiração dos outros, e aquele rufar debaixo de nós está ficando mais alto à medida que vamos descendo mais. A luz da porta do dormitório lá em cima desse buraco não é nada além de uma manchinha, salpicando os cantos quadrados do poço com um pó descolorido, esmaecido. Vai ficando cada vez mais esmaecido até que um grito longínquo desce ecoando pelas paredes do poço – para trás! - e a luz desaparece por completo.

O assoalho alcança uma espécie qualquer de fundo sólido bem lá embaixo no interior do chão e pára com um rangido suave. Está escuro como breu, e posso sentir o lençol em torno de mim me sufocando. No exato momento em que consigo desamarrar o lençol, o chão começa a deslizar para frente com uma pequena sacudidela. Há uma espécie qualquer de lançadores ali embaixo que eu não consigo ouvir. Não consigo ouvir nem os caras respirando em torno de mim, e me dou conta de repente de que é porque aquele rufar foi gradualmente ficando tão alto que mais nada consigo ouvir. Devemos estar exatamente no meio dele. Comecei a dar puxões na droga do lençol que me prendia à cama e já estou com ele quase solto quando uma parede inteira desliza para cima, revelando um aposento enorme, com incontáveis equipamentos se estendendo até fora do alcance dos olhos, enxameando de homens suados e sem camisa, correndo de um lado para outro pelas coxias, os rostos inexpressivos e imprecisos, à luz do fogo lançado por uma centena de altos-fornos.

Aquilo – tudo que vejo – tem exatamente o aspecto da coisa que parecia ser pelo som, maneira como soavam, do interior de uma imensa represa. Enormes tubos de metal desaparecem lá no alto na escuridão. Fios se estendem até os transformadores numa extensão de se perder de vista. Graxa e escória de carvão aparecem por toda parte, manchando de vermelho e de negro os acopladores, os motores e os dínamos.

Os trabalhadores movem-se todos na mesma velocidade, rápida e suave, um ritmo natural e fluido. Ninguém está com pressa. Um deles espera um segundo, gira um controle, aperta um botão, liga o interruptor, e um dos lados de seu rosto fulgura, branco como um raio por causa da fagulha do interruptor de conexão, e continua correndo, subindo os degraus de aço e por uma coxia de ferro – passando uns pelos outros com tanta suavidade e tão perto que ouço o roçar dos lados molhados como o bater do rabo de um salmão na água – param, de novo disparam um raio de um outro interruptor, e continuam correndo. Eles se movem rapidamente para todas as direções até se perder de vista, estas imagens momentâneas dos rostos imprecisos de bonecos dos trabalhadores.

Os olhos de um trabalhador se fecham de repente quando ele está em plena corrida, e ele cai; dois de seus companheiros, que estão correndo por ali, o agarram e levantam, e o atiram dentro de um alto-forno pelo qual vão passando. O alto-forno solta uma bola de fogo e ouço o barulho do caminhar através de um campo coberto de sementes de vagens. Este ruído se mistura com o zumbido e o clangor do resto das máquinas.

Há um ritmo nisso, como uma pulsação trovejante.

O chão do dormitório continua deslizando para fora do poço e entra na sala de máquinas. Imediatamente vejo o que está direto acima de nós – um daqueles negócios como cavaletes que a gente vê em matadouros, cilindros com lagartas para transportar as carcaças de congelador para o açougueiro sem muito trabalho. Dois sujeitos de calças esportivas, camisas brancas com as mangas arregaçadas e gravatas pretas finas estão debruçados na caixa acima de nossas camas, gesticulando um para o outro à medida que falam, os cigarros em longas piteiras traçando linhas de luz vermelha. Estão falando mas não se pode distinguir as palavras por causa do rugido contínuo que se ouve por toda parte em volta deles. Um deles estala os dedos, e o operário mais próximo se vira bruscamente e corre em sua direção. O outro aponta com a piteira para baixo, para uma das camas, e o operário sai correndo para a escadinha de aço e desce rápido até o nosso nível, onde desaparece entre dois transformadores, grandes como celeiros de batatas.

Quando aquele operário torna a aparecer, está puxando um gancho preso na lagarta acima e dando passadas gigantescas à medida que o vai impulsionando. Passa pela minha cama e um forno rugindo em algum lugar de repente ilumina o seu rosto, ali bem em cima do meu, um rosto bonito e brutal, e ceroso como uma máscara, inexpressivo. Já vi um milhão de rostos como esse.

Ele vai até a cama e com uma das mãos agarra o velho Vegetal Blastic pelo calcanhar e o levanta tranqüilamente como se o Blastic não pesasse nada além de alguns gramas; com a outra mão o operário enfia o gancho através do tendão do calcanhar, e o velho fica pendurado ali de cabeça para baixo, o rosto bolorento inchado e grande, assustado, os olhos espumantes de medo mudo. Fica sacudindo os braços e a perna livre até que o pijama escorrega sobre a sua cabeça. O operário agarra a parte de cima e as pontas e o vira como se fosse uma saca de aniagem e puxa o gancho de volta na lagarta até a coxia, olha para cima, onde estão aqueles dois de camisa branca. Um deles tira um escalpelo de uma bainha presa ao cinto. Há uma corrente soldada ao escalpelo. Desce o escalpelo até o operário, prende a outra ponta da corrente no corrimão, de forma que o operário não possa fugir com uma arma.

O operário pega o escalpelo e corta a frente do velho Blastic com um golpe firme, e o velho pára de se agitar. Penso que vou vomitar, mas não há sangue ou entranha caindo como eu imaginava que veria – apenas um chuveiro de mofo e cinzas, e de vez em quando um pedaço de fio ou de vidro. O operário está parado ali, coberto até os joelhos pelo que parece ser escória de carvão.

Um dos fornos está aberto em algum lugar e engole alguém.

Penso em saltar de pé, correr e acordar McMurphy e Harding, e os outros, tantos quantos eu puder, mas não haveria nenhum sentido em fazer isso. Se eu sacudisse alguém até acordar, ele diria "ora seu idiota maluco, que diabo é que está comendo você?". E então provavelmente ajudaria um dos operários a me levantar até um daqueles ganchos, dizendo, ''que tal, vamos ver como são as entranhas de um índio?".

Ouço a respiração arquejante, fria, alta e molhada da máquina de neblina, vejo seus primeiros vapores virem infiltrando-se, saindo debaixo da cama de McMurphy. Espero que ele saiba o bastante para se esconder na neblina.

Ouço uma tagarelice idiota que me recorda alguém conhecido, viro-me o suficiente para poder olhar para o outro lado. É o Relações-Públicas careca com o rosto inchado, à respeito do qual os pacientes estão sempre discutindo quanto à razão por que está inchado. "Eu acho que ele usa", argumentam. "Pois eu acho que não; alguma vez já ouviu falar de um cara que realmente usasse um?" "Pois é, mas você alguma vez já ouviu falar de um cara como ele antes?" O primeiro paciente encolhe os ombros e balança a cabeça. "Esse é um ponto interessante."

Agora ele está despido, exceto por uma camiseta comprida com monogramas vistosos bordados em vermelho na frente e atrás. E eu vejo, de uma vez por todas (a camiseta sobe um pouco nas costas quando ele vem andando e passa por mim, dando-me uma espiadela), que ele positivamente usa um, tão apertado que pode explodir a qualquer segundo.

E balançando, pendurados no espartilho, ele traz uma dúzia de objetos murchos, presos pelo cabelo: escalpos.

Ele carrega um vidrinho de alguma coisa que beberica para manter a garganta aberta para continuar falando, e um lencinho com cânfora que põe diante do nariz de tempos em tempos para afastar o fedor. Há um bando de professoras e universitárias e congêneres andando rapidamente atrás dele. Elas usam aventais azuis e têm os cabelos presos em cachos. Elas o estão ouvindo em uma breve dissertação sobre a excursão.

Ele pensa em alguma coisa engraçada e tem de parar a dissertação durante tempo suficiente para tomar um gole do vidro para parar de rir. Durante a pausa, uma de suas alunas olha sonhadoramente em volta e vê o Crônico estripado, pendurado pelo calcanhar. Ela arqueja e dá um salto para trás. O Relações-Públicas se vira e avista o cadáver e sai correndo para pegar uma daquelas mãos inertes e fazê-lo girar. A estudante avança toda encolhida para um exame cauteloso, o rosto num transe.

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