– É verdade – diz o comandante.
Nisso, o guarda chega.
– Bom dia, comandante. Estava procurando você, Papillon, pois hoje de manhã você saiu como se fosse trabalhar, mas você não tinha nada para fazer.
– Saí, Sr. Angosti, para ver se conseguia parar essa batalha; infelizmente, eles estavam enfurecidos.
– Sim, é possível, mas agora não terá mais que guiar o búfalo, como eu já disse. Aliás, domingo de manhã, vamos abatê-lo, isso vai dar carne para a penitenciária.
– Não vão fazer isso.
– Não é você que vai me impedir.
– Eu não, mas o comandante. E, se não bastar, o Dr. Germain Guibert, a quem vou pedir para intervir e salvar Brutus.
– Em que você está metendo o nariz?
– Naquilo que é da minha conta. O búfalo, sou eu que o guio e ele é meu camarada.
– Seu camarada? Um búfalo? Você está brincando?
– Olhe, Sr. Angosti, quer me deixar falar um pouquinho?
– Deixe-o tomar a defesa do búfalo dele – diz o comandante.
– Bom, fale.
– O senhor acha, Sr. Angosti, que os bichos falam entre si?
– Por que não? Acho que eles se comunicam.
– Então Brutus e Danton fizeram um duelo de comum acordo.
E de novo explico tudo, do início até o fim.
– Cristacho! – diz o corso -, você é um sujeito curioso, Papillon. Faça um acordo com Brutus, mas, no próximo que ele matar, ninguém o salva, nem o comandante. Ponho você de novo no cargo de vaqueiro. Dê um jeito para o Brutus trabalhar.
Dois dias mais tarde, consertada a carroça pelos operários da oficina, Brutus em companhia de sua legítima esposa, Marguerite, voltava a transportar diariamente água de mar.
REVOLTA EM SAINT-JOSEPH
As ilhas são extremamente perigosas por causa dessa pseudoliberdade de que gozamos. Sofro ao ver todo mundo confortavelmente acomodado numa vida sem problemas. Uns esperam o fim de sua pena e nada mais, enquanto chafurdam nos seus vícios.
Esta noite, estou esticado na minha rede. No fundo da sala há um jogo infernal, a tal ponto que meus dois amigos, Carbonieri e Grandet, foram obrigados a se juntar para controlá-lo. Um só não dava. Quanto a mim, tento fazer aparecer lembranças do meu passado. Elas se negam a vir: parece que o tribunal nunca existiu. Por mais que eu faça força para esclarecer as imagens difusas deste dia fatal, não consigo ver nenhum personagem nitidamente. Apenas o promotor se apresenta com toda a sua cruel verdade. Meu Deus! Pensava ter vencido você definitivamente quando me vi em Trinidad, na casa de Bowen. Qual é a praga que tu me rogaste, nojento, para que seis fugas não me tenham dado a liberdade? Na primeira, quando tu recebeste, dos trabalhos forçados, a notícia, pudeste dormir tranqüilo? Bem que eu gostaria de saber se tu tiveste medo ou apenas raiva, ao saber que tua presa escapara ao caminho da podridão no qual a jogaras quarenta dias antes. Eu tinha estourado a gaiola. Que fatalidade me perseguiu para que eu tivesse de voltar aos trabalhos forçados onze meses depois? Talvez Deus me tenha punido por eu desprezar a vida primitiva mas tão bela que poderia ter levado pelo tempo que quisesse?
Lali e Zoraima, meus dois amores, esta tribo sem polícias, sem outra lei que a maior compreensão entre os seres que a constituem, sim, estou aqui por culpa minha, mas tenho que pensar numa única coisa: fugir, fugir ou morrer. Quando soubeste que eu fora preso novamente e voltara para os trabalhos forçados, se tu tiveste de novo o teu sorriso de vencedor do tribunal, pensando: “Tudo está bem assim, ele está de novo no caminho da podridão onde o coloquei”, tu te enganas. Jamais minha alma ou meu espírito pertencerão a este caminho degradante. Tu tens só o meu corpo: teus guardas, teu sistema penitenciário constatam todo dia, duas vezes por dia, que estou presente e isto te basta. Seis horas da manhã: “Papillon?” – “Presente.” Seis horas da tarde: “Papillon?” – “Presente.” Está tudo bem. Já há seis anos que nós o seguramos, ele já deve ter começado a apodrecer e, com um pouco de sorte, num dia próximo, o sino chamará os tubarões para recebê-lo com todas as honras, no festim diário que lhes oferece gratuitamente o teu sistema de eliminação por desgaste.
Tu te enganas, teus cálculos não estão certos. Minha presença física nada tem a ver com a minha presença moral. Queres que eu te diga uma coisa? Não pertenço aos trabalhos forçados, não assimilei nada dos hábitos dos meus colegas, nem dos hábitos dos meus amigos mais íntimos. Sou candidato permanente à fuga.
Estou conversando com meu acusador, quando dois homens se aproximam da minha rede:
– Está dormindo, Papillon?
– Não.
– Queríamos falar com você.
– Falem. Falando baixinho, aqui não dá para ninguém ouvir.
– Bem, estamos preparando uma revolta.
– Seu plano?
– Mataremos todos os árabes, todos os guardas, todas as esposas dos guardas, com as crianças, porque são sementes de tiras. Para isso, eu, Arnaud, e meu amigo Hautin, com a ajuda de quatro homens que estão de acordo, atacaremos o depósito de armas do comandante. Estou trabalhando lá para manter as armas em bom estado. Tem 23 metralhadoras e mais de oitenta fuzis, carabinas e Lebel. A ação será feita de…
– Pare, não diga mais nada. Me nego a topar. Agradeço a confiança, mas não estou de acordo.
– A gente pensava que você acreditaria ser o chefe da revolta. Deixa eu lhe dar os detalhes que estudamos e vai ver que não tem fracasso possível. Faz cinco meses que estamos preparando o golpe. Já temos mais de cinqüenta homens de acordo.
– Não me dá nenhum nome, me nego a ser o chefe e mesmo a atuar nesse golpe.
– Por quê? Você nos deve uma explicação, depois da confiança que tivemos em lhe dizer tudo.
– Não pedi para você contar os seus projetos. Depois, só faço na vida o que quero e não o que os outros querem. Além disso não sou um assassino em série. Posso matar alguém que me fez algo de grave, mas não mulheres e crianças que não me fizeram nada. O mais grave, vocês não estão vendo e eu vou dizer a vocês: mesmo que a revolta der certo, vocês vão fracassar.
– Por quê?
– Porque a coisa principal, fugir, não é possível. Vamos admitir que cem homens sigam a revolta, como é que vão partir? Há apenas dois barcos nas ilhas. No máximo, não agüentam mais de quarenta presos, as duas. O que vão fazer com os outros sessenta?
– Nós estaremos entre os quarenta que vão partir com os barcos.
– È o que você está imaginando, mas os outros não são mais cretinos que vocês, estarão armados como vocês e, se eles tiverem um pouco de miolo na cabeça, depois de eliminar aqueles de que você falou, vocês vão começar a atirar uns contra os outros, para ter o direito de subir num barco. O mais importante é que, estes dois barcos, nenhum país vai querer recebê-los, os telegramas vão chegar antes de vocês em todos os países para onde poderiam ir, ainda mais com uma legião de mortos deixados atrás de vocês. Em qualquer lugar a que cheguem serão presos e devolvidos à França. Vocês sabem que voltei da Colômbia, sei muito bem o que estou dizendo. Dou a minha palavra de que, depois de um golpe desse, eles devolvem a gente de qualquer lugar.
– Bom. Então, você recusa.
– Recuso.
– É a última palavra?
– É a minha decisão irrevogável.
– Então, vamos, não temos mais nada a fazer aqui.
– Espere um pouco. Peço para vocês não falarem desse projeto com nenhum dos meus amigos.
– Por quê?
– Porque sei de antemão que eles vão recusar; então, não adianta.
– Muito bem.
– Acham que não podem abandonar este projeto?
– Sinceramente, não, Papillon.
– Não entendo o ideal de vocês, já que, muito seriamente, estou explicando que, mesmo que a revolta dê certo, vocês não vão ficar livres.
– Queremos sobretudo nos vingar. E agora que você explicou que é impossível chegar a um país que receba a gente, então entraremos no mato e organizaremos uma turma na selva.