Depois de alguns meses, consegui voltar para Royale.
9 SAINT-JOSEPH
MORTE DE CARBONIERI
Ontem, meu amigo Matthieu Carbonieri levou uma facada em pleno coração. Este assassinato vai desencadear uma série de outros. Ele estava no banheiro, se lavando, e foi com o rosto cheio de sabão que levou essa facada, Quando a gente toma banho, tem o hábito de abrir a faca e deixá-la sob as roupas, a fim de ter tempo de pegá-la se alguém que a gente pensa ser inimigo se aproxima subitamente. Não ter feito isso foi um erro que custou a vida dele. Quem matou meu amigo foi um armênio, um tipo perigoso.
Com a autorização do comandante, ajudado por um outro, desci meu amigo até o cais. Ele é pesado e, descendo o costão, tive que descansar três vezes. Fiz com que lhe amarrassem uma grande pedra aos pés e, em lugar de corda, um fio de ferro. Assim, os tubarões não poderão cortá-lo e ele afundará no mar sem ser devorado por eles.
O sino toca e chegamos ao cais. São 6 horas da tarde. O sol se deita no horizonte. Entramos no bote. No famoso caixão, que serve para todo mundo, abaixada a tampa, Matthieu dorme para sempre Acabou-se para ele.
– Para a frente! Empurrem aí! – grita o guarda à turma.
Em menos de dez minutos, chegamos à corrente formada pelo canal entre Royale e Saint-Joseph. E então, de repente, minha garganta se aperta. Dezenas de barbatanas de tubarões saem da água, girando velozmente num espaço restrito de menos de 400 metros. Aí estão os come-condenados, chegaram ao encontro na hora, no lugar exato.
Que o bom Deus faça com que não tenham tempo de apanhar meu amigo. Os remos são erguidos, em sinal de adeus. Suspendemos a caixa. Enrolado nos sacos de farinha, o corpo de Matthieu escorrega, puxado pelo peso da grande pedra, e rapidamente toca o mar.
Horror! Assim que entrou na água e eu penso que desapareceu, ele torna a subir, erguido no ar por, não sei, sete, dez ou vinte tubarões – quem pode saber? Antes que o bote se afaste, os sacos de farinha que o envolvem são arrancados e então acontece uma coisa inexplicável. Matthieu aparece, cerca de dois ou três segundos, de pé em cima da água. O antebraço direito já foi amputado. Com metade do corpo fora da água, ele avança direto para o bote; depois, no meio de um torvelinho mais forte, desaparece para sempre. Os tubarões passaram sob nosso bote, esbarrando no fundo. Um homem perde o equilíbrio e quase cai na água.
Todo mundo está petrificado, inclusive os guardas. Pela primeira vez, eu tive vontade de morrer. Faltou pouco para que eu me atirasse aos tubarões, a fim de desaparecer para sempre deste inferno.
Lentamente, subo do cais ao barracão. Ninguém me acompanha. Pus a padiola no ombro e chego à planície onde meu búfalo Brutus atacou Danton. Paro e me sento. A noite caiu, são apenas 7 horas da tarde. A oeste, o céu é um pouco iluminado por algumas línguas do sol, que desapareceu no horizonte. O resto é negro, furado por instantes pelo pincel do farol da ilha; tenho o coração pesado.
Merda! Você queria ver um enterro e, ainda por cima, o enterro do seu amigo, não queria? Pois bem, viu e bem visto! Com sino e tudo o mais! Está satisfeito? Sua curiosidade doentia foi satisfeita.
Só falta abotoar o cara que matou seu amigo. Quando? Esta noite. Por que esta noite? É muito cedo, o cara vai estar mais alerta do que nunca. São dez na curriola dele. Não posso me afobar e ter pressa demais nesse golpe. Vejamos, com quantos homens posso contar? Quatro, mais eu: cinco. Está bem. Liquidar o cara. Sim, e, se possível, vou tratar de me mandar. Dessa vez, nada de jangada, de preparação, nada; dois sacos de cocos e me enfio pelo mar. A distância até a costa é relativamente curta, 40 quilômetros em linha reta. Com as ondas, os ventos e as marés, isso deve se transformar em 120 quilômetros. É só uma questão de resistência. Sou forte e devo poder agüentar dois dias no mar, montado a cavalo nos sacos.
Pego a padiola e subo para o barracão. Quando chego à porta, revistam-me, coisa extraordinária. Isso nunca acontece. O guarda em pessoa tira-me a faca.
– Querem que me matem? Por que me desarmam? Sabem que me mandam para a morte, fazendo isso? Se me matarem, a culpa será de vocês.
Ninguém responde, nem os guardas, nem os carcereiros árabes. Abrem a porta e eu entro na sala.
– Não se enxerga nada aqui, por que uma lâmpada só em lugar de três?
– Papi, venha por aqui – Grandet me puxa pela manga.
A sala não está muito ruidosa. Sente-se que alguma coisa grave vai acontecer ou já aconteceu.
– Não tenho mais minha mudinha (faca). Tiraram-me na revista.
– Não vai precisar dela esta noite.
– Por quê?
– O armênio e seu amigo estão na privada.
– Que estão fazendo lá embaixo?
– Estão mortos.
– Quem esfriou eles?
– Eu.
– Andou depressa. E os outros?
– Restam quatro na curriola deles. Paulo me deu sua palavra de homem que não iam se mexer e que esperariam para saber se você está de acordo em parar a coisa por aí.
– Dê-me uma faca.
– Tome, pegue a minha. Fico neste canto. Vá falar com eles.
Avanço para a curriola deles. Agora, meus olhos se acostumaram à pouca luz. Enfim, consigo distinguir o grupo. De fato, os quatro estão de pé diante de suas redes, colados uns aos outros.
– Paulo, você quer falar comigo?
– Sim.
– Só, ou na frente dos seus amigos? Que é que você quer? Deixo, prudentemente, 1 metro e 50 entre mim e eles. Minha faca está aberta dentro da manga esquerda e o cabo está bem colado na palma da minha mão.
– Eu queria lhe dizer que acho que o seu amigo foi suficientemente vingado. Você perdeu seu melhor amigo, nós perdemos dois. Na minha opinião, isso devia parar por aí. Que acha?
– Paulo, tomo nota da sua oferta. O que podemos fazer, se você estiver de acordo, é que as duas curriolas se comprometam a não fazer nada durante oito dias. Enquanto isso, veremos o que se deve fazer. De acordo?
– Está bem.
Afasto-me.
– Então, que foi que eles disseram?
– Que acham que Matthieu, com a morte do armênio e de Sans-Souci, foi suficientemente vingado.
– Não foi, não – diz Galgani.
Grandet não diz nada. Jean Castelli e Louis Gravon estão de acordo em fazer um pacto de paz.
– E você, Papi?
– Primeiro, é preciso lembrar quem matou Matthieu? Foi o armênio. Bem. Propus um acordo. Dei minha palavra a eles, e eles toparam, que durante oito dias ninguém vai fazer nada.
– Não quer vingar Matthieu? – Diz Galgani.
– Velho, Matthieu já foi vingado, dois morreram por ele. Por que matar os outros?
– Pelo menos eles sabiam? Isso é que precisamos descobrir.
– Boa noite a todos, desculpem-me. Vou dormir, se puder. Tenho necessidade de ficar sozinho e me deito em minha rede.
Sinto uma mão que desliza por mim e retira suavemente a faca. Uma voz cochicha docemente na noite:
– Durma se puder, Papi, durma tranqüilo. Nós, de qualquer jeito, cada um por sua vez, vamos ficar de guarda.
A morte de meu amigo, tão brutal, repugnante, aconteceu sem motivo sério. O armênio matou-o porque, à noite, no jogo, ele o obrigara a pagar uma aposta de 170 francos. Aquele corno se sentiu diminuído porque foi obrigado a tomar uma atitude diante de trinta ou quarenta jogadores. Com receio de ser atacado dos dois lados por Matthieu e Grandet, não pudera deixar de obedecer.
Covardemente, matou um homem que era o tipo do aventureiro limpo e direito em seu meio. Esse golpe me atingiu fortemente e não tive senão uma satisfação, a de que os assassinos não viveram mais do que algumas horas depois de seu crime. É bem pequena.
Grandet, como um tigre, com a rapidez digna de um campeão de florete, cortou-lhes o pescoço, antes que tivessem tempo de se pôr em guarda. Imagino: o lugar onde caíram deve estar inundado de sangue. Penso, bestamente: “Tenho vontade de perguntar quem os atirou na privada”. Mas não quero falar. Com as pálpebras fechadas, vejo o sol tragicamente vermelho e violeta, clareando com seus últimos raios esta cena dantesca: os tubarões disputando meu amigo… E aquele tronco de pé, já com o antebraço amputado, avançando para o bote!… Então, é verdade que o sino chama os tubarões e que aqueles sujos sabem que vão lhes servir a bóia quando o sino toca… Vejo ainda aquelas dezenas de barbatanas, lúgubres reflexos prateados, passar como submarinos, girando em círculo… Realmente, eram mais de cem… Para Matthieu, para o meu amigo, acabou-se: o caminho da podridão fez seu trabalho até o fim.