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Esse oficial superior, hoje coronel da guarda nacional, me honrou durante 26 anos com a sua amizade nobre e indestrutível. Simboliza realmente a retidão, a nobreza e os sentimentos mais elevados que um homem pode possuir. Apesar da sua alta posição na hierarquia militar, nunca deixou de me testemunhar a sua fiel amizade, nem de me ajudar em tudo e por tudo. Devo muito ao Coronel Francisco Bolagno Utrera.

Sim, vou fazer o impossível para me tornar e permanecer honesto. O único inconveniente é que nunca trabalhei, não sei fazer nada. Terei que fazer qualquer coisa para ganhar a vida. Não há de ser fácil, mas tenho certeza de que conseguirei. Amanhã serei um homem igual aos outros. Promotor, você perdeu a partida: saí definitivamente do caminho da podridão.

Viro-me e reviro-me na rede, no nervosismo da última noite de minha odisséia como prisioneiro. Levanto-me, atravesso a horta, que trabalhei tão bem nestes últimos meses. A lua ilumina tudo como se fosse dia. A água do rio corre sem ruído para a embocadura. Não se ouvem pássaros, estão dormindo. O céu está cheio de estrelas, mas a lua brilha tanto, que é preciso ficar de costas para ela, para poder ver as estrelas. Ã minha frente, a floresta virgem, com apenas uma clareira, onde se ergue a aldeia de El Dorado. Descanso nessa profunda paz da natureza. Minha agitação diminui aos poucos e a serenidade do momento dá a calma de que necessito.

Consigo imaginar muito bem o lugar onde, amanhã, desembarcarei da chata para pisar a terra de Simón Bolívar, o homem que libertou este país do jugo espanhol e que legou aos seus filhos os sentimentos de humanidade e de compreensão, graças aos quais tenho hoje a possibilidade de recomeçar a minha vida.

Estou com 37 anos, sou ainda moço. Meu estado tísico é perfeito. Nunca estive seriamente doente e posso afirmar que meu equilíbrio mental é perfeitamente normal. O caminho da podridão não deixou marcas degradantes em mim porque, na realidade, acredito que nunca me adaptei a ele.

Nas primeiras semanas da minha liberdade, terei que achar um modo de ganhar a vida, e terei ainda que tratar e fazer viver o pobre Picolino. Foi uma grande responsabilidade que assumi. Contudo, apesar de constituir um fardo pesado para mim, vou cumprir a promessa feita ao diretor e não abandonar esse infeliz até que possa interná-lo num hospital, entregue a mãos competentes.

Vou comunicar a meu pai que estou livre? Há muitos anos que ele não tem notícias minhas. Como vou saber onde está morando? As únicas notícias que teve a meu respeito foram as visitas da polícia, em cada uma das minhas evasões. Não, não adianta ter pressa. Não tenho o direito de remexer na ferida que talvez os anos transcorridos já cicatrizaram. Vou escrever para ele quando estiver bem de vida, quando tiver adquirido uma situação modesta mas estável, livre de problemas, e quando lhe puder dizer: “Paizinho, teu filho está livre, tornou-se homem bom e honesto. Vive deste ou daquele jeito. Não precisas mais baixar a cabeça quando falam dele, e é por isso mesmo que te escrevo, e para te dizer que te amo e que te venero sempre”.

Estamos em plena guerra mundial. Quem sabe se os alemães se instalaram em minha pequena aldeia natal? O departamento de Ardèche não é uma região muito importante da França. A ocupação ali não deve ser muito rigorosa. Que é que os alemães iriam fazer lá, a não ser colher castanhas? Sim, só vou escrever para casa quando estiver com a vida em ordem.

E agora, para onde vou? Acho que ficarei nas minas de ouro, num lugar chamado Callao. Aí poderei passar o ano que me pediram para viver numa pequena comunidade. Que vou fazer ali? Quem é que sabe! Mas não quero levantar problemas antes tia hora. Mesmo que tenha de cavar a terra para ganhar meu pão, estou disposto a fazer isso mesmo. A primeira coisa a fazer é aprender a viver em liberdade. Não vai ser fácil. Faz treze anos – com exceção daqueles poucos meses em Georgetown – que não tenho a preocupação de saber de onde vem a comida. Todavia, em Georgetown, eu soube me defender. A aventura continua, tenho que inventar uns truques para viver, naturalmente sem fazer ma! a ninguém. Vamos ver o que acontece. Amanhã, então, Callao.

São 7 horas da manhã. Belo sol tropical, céu azul sem nuvens, passarinhos cantando sua alegria de viver, meus amigos todos reunidos à porta da nossa horta, Picolino vestido à paisana e bem barbeado. Parece que a natureza, os bichos e os homens respiram contentamento e festejam a minha libertação. Um tenente se acha entre os meus amigos, ele vai nos acompanhar até a aldeia de El Dorado.

– Mais um abraço – diz Totó, – e vá embora. É melhor para todo mundo acabar logo com isso.

– Adeus, meus chapas. Quando vocês passarem por Callao, venham me procurar. Se eu tiver uma casa, ela estará aberta para vocês.

– Adeus, Papi, boa sorte!

Dirigimo-nos rapidamente para o embarcadouro e subimos na chata. Picolino caminha muito bem. Ele está paralisado só dos quadris para cima, as pernas se mexem bem. Em menos de quinze minutos, atravessamos o rio.

– Vamos, aqui estão os papéis de Picolino. Boa sorte, franceses. Vocês estão livres a partir deste momento. Adiós!

Pois, vejam, não foi difícil largar as correntes que carregávamos havia treze anos! “Vocês estão livres a partir deste momento.” Viram as costas para você e abandonam a vigilância. E nada mais. O caminho de pedregulhos que sobe do rio é logo transposto. Só temos um pacotinho com três camisas e uma calça para trocar. Estou com o terno azul-marinho, uma camisa branca e uma gravata azul para combinar.

Mas é claro que não se reconstrói uma vida como se costura um botão de calça. E se hoje, 25 anos depois, sou casado, tenho uma filha, vivo feliz em Caracas como cidadão venezuelano, isso se deve a muitos outros acontecimentos, a sucessos e fracassos, mas sempre como homem livre e cidadão correto. Talvez um dia eu venha a contar estas últimas aventuras, bem como algumas outras histórias um pouco banais que não couberam nesta narrativa.

O AUTOR E SUA OBRA

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Henri Charrière tornou-se famoso da noite para o dia, como Papillon, ao escrever um livro sobre a extraordinária aventura de sua vida – a fantástica história que se iniciou quando ele foi condenado, aos 25 anos, em 1932, à prisão perpétua, que o levou ao presídio de Cayena, do qual, depois de várias tentativas, conseguiu fugir.

Seu livro, que teve por título a sua alcunha, “Papillon”, alcançou, ao ser traduzido para as mais diversas línguas, mais de catorze milhões de exemplares. Coro as suas sucessivas edições, os lucros do autor se elevaram a cerca de quatro milhões de dólares, afora seiscentos mil dólares que recebeu pela adaptação cinematográfica da obra. Esse um aspecto de seu sucesso editorial. Mas ele obteve outros tipos de consagração, como a conferência que pronunciou, em 1969, na Faculdade de Direito da Universidade da Sorbonne, em Paris. Cidade em que também se realizou uma “Noite da Borboleta”, em homenagem a “Monsieur” Henri Charrière, ou antes, Papillon (Borboleta). À festa compareceram mais de quinhentas personalidades, entre escritores, políticos, juristas, artistas, etc. Papillon havia-se transformado numa atração da sociedade parisiense.

O livro “Papillon” pode ser considerado como um exemplo típico de literatura “oral”; suas aventuras foram narradas com emoção e clareza. A verdade é que ele – indomável, jovial, inteligente, espontâneo, falador e sensível – soube estabelecer uma adequação perfeita entre o homem Henri Charrière e o personagem (verdadeiro) Papillon. Havia uma razão bastante profunda para isso: ambos nasceram, literariamente, de um só sofrimento, de uma só esperança de liberdade e de um mesmo amor, entranhado, à vida. Foi por isso, disse ele, que escreveu “Papillon”, nele “colocando toda a sua alma”. Henri Charrière faleceu em julho de 1973.

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