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Os bobalhões reunidos no cais, porque Saint-Martin-de-Ré é uma ilha e teríamos de tomar um barco para atravessar o braço de mar, assistiram à retirada dos dois pobres-diabos. Sem, por sinal, manifestarem qualquer sentimento em relação a nós. E, como os policiais deviam entregar-nos à Cidadela, mortos ou vivos, carregaram os cadáveres conosco para o barco.

A travessia não é longa, mas podemos respirar um bom bocado de ar marítimo. Falo a Dega: “Isto cheira a fuga”. Ele sorri. E Julot, que está ao lado, nos diz:

– Sim. Isto cheira a fuga. Estou de volta pra lá, de onde fugi há cinco anos. Fui em cana como uma besta, no momento em que ia apagar meu receptador, que me delatou no meu processo, há dez anos. Procuremos ficar uns ao lado dos outros, porque em Saint-Martin eles nos botam ao acaso, em grupos de dez, em cada cela.

Julot estava enganado. Quando chegamos ali, ele e dois outros são chamados e colocados à parte. Eram três evadidos do degredo, recapturados na França e mandados para lá pela segunda vez.

Nas celas, em grupos de dez, começa para nós uma vida de expectativa. A gente tem o direito de falar, de fumar, a alimentação é muito boa. Esse período não è perigoso, a não ser para o plano. Sem que saibamos por que, somos chamados de repente, desnudados e minuciosamente revistados. Em primeiro lugar, os esconderijos do corpo, até a planta dos pés, depois as roupas. “Vistam-se!” E voltamos para o lugar de onde viemos.

A cela, o refeitório, o pátio onde passamos longas horas marchando em fila. Um, dois! Um, dois! Um, dois!… Marchamos em grupos de 150 detidos. A cauda do salsichão é comprida, os tamancos ressoam. Silêncio absoluto obrigatório. Depois vem o “Desfazer as fileiras!” Cada um se senta no chão, grupos se formam, por categorias sociais. Em primeiro lugar, os homens do autêntico submundo, entre os quais a origem tem pouca importância: corsos, marselheses, toulousanos, bretões, parisienses, etc. Tem até um de Ardèche, sou eu. E devo dizer, em favor de Ardèche, que só há dois de seus filhos neste comboio de 1 900 homens: um guarda campestre que matou sua mulher e eu. Conclusão: os naturais de Ardèche são boa gente. Os outros grupos se formam de qualquer maneira, uma vez que há mais otários do que malandros a caminho do degredo. Esses dias de expectativa se chamam dias de observação. E é verdade que somos observados sob todos os ângulos.

Numa tarde, eu estou sentado ao sol, quando um homem se aproxima de mim. Usa óculos, é miúdo, magro. Tento adivinhar que tipo de gente é; porém, com o nosso uniforme, é difícil.

– Você que é o Papillon? – pergunta, com um sotaque corso muito forte.

– Sim, sou eu. Quer alguma coisa de mim?

– Venha às privadas – diz ele e se afasta.

– É um prisioneiro corso – fala Dega. – Com certeza, um bandido das montanhas. Que é que ele vai querer com você?

– Vou saber.

Caminho para as privadas, instaladas no meio do pátio, e finjo estar mijando. O homem está ao meu lado, na mesma posição. Ele me diz, sem me olhar:

– Sou cunhado de Pascal Matra. Ele me disse, no parlatório, que, se precisasse de ajuda, procurasse você, da parte dele.

– Sim, Pascal é meu amigo. Que é que você quer?

– Não posso guardar o canudo: estou com diarréia. Não sei em quem confiar e tenho medo de que seja roubado ou que os guardas o encontrem. Eu lhe imploro, Papillon, fique com o meu canudo alguns dias.

E ele me mostra um canudo muito mais grosso do que o meu. Fico com receio de que esteja armando uma cilada e pedindo isso para saber se carrego um canudo: se disser que não tenho certeza de poder guardar dois, ele ficará sabendo. Então, friamente, pergunto:

– Quanto tem aí dentro?

– Vinte e cinco mil francos.

Sem mais nada, pego o canudo, aliás muito limpo, e, na frente dele, o introduzo no ânus, perguntando a mim mesmo se um homem é capaz de carregar dois tubos ali. Não sei se pode. Levanto, visto minhas calças… tudo vai bem, não me sinto incomodado.

– Meu nome é Ignace Galgani – diz ele, antes de ir embora. – Obrigado, Papillon.

Volto para junto de Dega e lhe conto o caso, à parte.

– Não é pesado demais?

– Não.

– Então, deixa pra lá.

Procuramos entrar em contato com os que fugiram, se possível Julot ou Guittou. Temos sede de informações: como é a coisa por lá; como a gente é tratado; como fazer para ficar junto com um boa gente, etc. O acaso faz com que encontremos um tipo curioso, um caso à parte. É um corso que nasceu na prisão de forçados. Seu pai era vigilante e vivia com sua mãe nas Ilhas da Salvação. Ele nasceu na Ilha Royale, uma das três ilhas, sendo as outras a Saint-Joseph e a do Diabo. Que destino! Agora voltava para lá, não como filho de guarda, porém como forçado.

Ele tinha sido presenteado com doze anos de trabalhos forçados por crime de roubo com arrombamento. Rapaz de dezenove anos, um tipo camarada, olhos claros e honestos. Tal como Dega, vê-se logo que ele não está por dentro. Tem pouca noção dos macetes do submundo, mas vai ser útil nos fornecendo todas as informações possíveis sobre o que está à nossa frente. Ele nos conta a vida nas ilhas, onde viveu catorze anos. E nos informa, por exemplo, que, nas ilhas, fora criado por um forçado, um famoso durão capturado num caso de duelo a faca em Butte, pelos belos olhos de uma certa Casque d’Or.

Ele nos dá conselhos preciosos: é preciso começar a fuga na Terra Grande, porque das ilhas é impossível; em seguida, não ser catalogado como perigoso, porque, com essa anotação, assim que se desembarca em Saint-Laurent-du-Maroni, porto de chegada, somos internados por um certo prazo ou para toda a vida, conforme o grau da anotação. As ilhas são sadias, mas a Terra Grande, conforme tinha contado Dega, é uma imundície que pouco a pouco vai destruindo o preso por meio de toda espécie de doenças, de mortes diversas, assassinatos, etc.

Como Dega, espero não ser internado nas ilhas. Mas um nó se forma em minha garganta: e se fui anotado como perigoso? Com minha prisão perpétua, o caso de Tribouillard e o do diretor, estou frito!

Um dia, corre depressa um boato: não devemos ir à enfermaria, sob pretexto nenhum, porque os que estão muito fracos ou muito doentes para suportar a viagem são ali envenenados. Só pode ser boato. De fato, um parisiense, Francis la Passe, nos confirma que é conversa fiada. Houve, na verdade, um envenenado, mas o irmão dele, empregado na enfermaria, explicou-nos o que aconteceu.

O cara que morreu, grande especialista em cofres-fortes, tinha, segundo se dizia, arrombado a embaixada da Alemanha, em Genebra ou em Lausanne, durante a guerra, por conta dos serviços secretos franceses. Apanhou ali documentos muito importantes, que passou aos agentes franceses. Em troca dessa operação, os tiras o libertaram da prisão, onde cumpria uma pena de cinco anos. E, a partir de 1920, com uma ou duas operações por ano, vivia tranqüilo. Toda vez que ia em cana, fazia uma chantagem com a Segunda Seção, que se apressava em intervir. Mas, desta vez, não deu certo. Pegou vinte anos e devia partir conosco. Para não ir no comboio, fingiu estar doente e foi introduzido na enfermaria. Uma pastilha de cianureto – sempre segundo o irmão de Francis la Passe – liquidou o assunto. Os cofres-fortes e a Segunda Seção já podiam dormir sossegados.

Este pátio é cheio de casos, uns verdadeiros, outros falsos. De todo jeito, a gente vai ouvindo, com isso o tempo passa.

Quando vou à privada, no pátio ou na cela, é preciso que Dega me acompanhe, por causa dos canudos. Ele fica na minha frente, enquanto faço o serviço, e me dá cobertura contra olhares muito abelhudos. Um canudo já é toda uma história, mas eu estou com dois, porque Galgani está cada dia mais doente. E aí há um mistério: o canudo que introduzo por último é sempre o último que sai, enquanto o que foi introduzido antes sai sempre primeiro. Como eles viravam na minha barriga, não sei, mas era assim.

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