– Não somos bons amigos, Papillon e eu – diz para Chatal.
– Estranho, pois é um bom cara, doutor.
– Talvez, mas ele tem birra comigo.
– Por causa do quê?
– Por causa de uma consulta que tivemos na reclusão.
– Doutor – digo -, o senhor chama isso de consulta, auscultar pelo postigo?
– É ordem da administração: nunca abrir a porta de um condenado.
– Muito bem, doutor, espero que o senhor esteja apenas emprestado a esta administração e que não pertença a ela.
– Falaremos disso mais tarde. Vou tentar fortalecê-los, a você e seu amigo. Quanto ao outro, receio que seja tarde demais.
Chatal me conta que, suspeito de estar preparando uma fuga, ele foi internado nas ilhas. Conta também que Jesus, aquele que me traiu na minha fuga, foi assassinado por um leproso. Ele não sabe o nome do leproso e pergunto para ele se não será um daqueles que nos ajudaram com tamanha generosidade.
A vida dos forçados nas Ilhas da Salvação é completamente diferente do que se pode imaginar. Em sua maioria, os homens são extremamente perigosos, por vários motivos. Primeiro, todo mundo come bem, pois se negocia tudo: álcool, cigarros, café, chocolate, açúcar, carne, verduras frescas, peixe, lagosta, coco, etc. Portanto, todo mundo goza de perfeita saúde, num clima muito sadio. Apenas os condenados temporários têm a esperança de serem libertados, mas os condenados à prisão perpétua – perdido por perdido! – são todos perigosos. Todos estão envolvidos nessas negociatas diárias, forçados e guardas. É uma mistura difícil de entender. Esposas de guardas procuram jovens forçados para trabalhos domésticos – e muitas vezes elas os tomam como amantes. São chamados “moços de serviços”. Alguns são jardineiros, outros cozinheiros. É essa a categoria que serve de ligação entre o campo e as casas de guardas. Os “moços de serviços” não são antipatizados pelos outros forçados, pois é graças a eles que se pode negociar de tudo. Mas eles não são considerados puros. Nenhum homem da autêntica malandragem aceitaria se rebaixar a esses servicinhos. Não concordaria em ser chaveiro, nem em trabalhar no refeitório dos guardas… Por outro lado, os presos pagam caríssimo pelas ocupações nas quais não tenham relação com os guardas: limpadores de latrinas, varredores de folhas secas, condutores de búfalos, enfermeiros, jardineiros da penitenciária, açougueiros, padeiros, remadores, carteiros, guardas do farol. Todos esses empregos são ocupados pelos verdadeiros duros. Um verdadeiro duro nunca trabalha na manutenção dos muros de contorno das estradas, das escadas, nem planta coqueiros; quer dizer, nunca trabalha nas tarefas ao sol ou sob a vigilância dos guardas. A gente trabalha das 7 horas ao meio-dia e das 2 às 6. Isso dá uma idéia do ambiente criado pela mistura de pessoas tão diferentes que vivem juntas, forçados e guardas, verdadeira aldeia em que se comenta tudo, se julga tudo, em que todo mundo observa a vida dos outros.
Dega e Galgani vieram passar o domingo comigo no hospital. Comemos maionese com peixe, sopa de peixe, batatas, queijo, café, vinho branco. Esta refeição, nós a fizemos no quarto de Chatal, ele, Dega, Galgani, Maturette, Grandet e eu. Pediram-me que conte toda a minha fuga, nos menores detalhes. Dega não vai tentar mais nada para fugir. Aguarda da França uma redução de cinco anos em sua pena. Com os três que ele já fez na França e mais três aqui, só faltará cumprir quatro. Se resignou a cumpri-los. Quanto a Galgani, acha que um senador corso está cuidando do caso dele.
Quando chega a minha vez, pergunto quais os lugares mais propícios, aqui, para uma fuga. É um espanto geral. Para Dega, é uma idéia que nem lhe passou pela cabeça; Galgani também não pensa nisso. Por sua vez, Chatal acha que um jardim deve ter suas vantagens para preparar uma jangada. Quanto a Grandet, ele me informa que é ferreiro numa oficina onde, pelo que está dizendo, há de tudo: pintores, carpinteiros, ferreiros, pedreiros, encanadores – 120 homens. Ele trabalha na manutenção dos prédios da administração. Dega, que é contador geral, me ajudará a obter o lugar que eu quiser. Será só escolher. Grandet me oferece a metade do seu cargo de controlador de jogo, de modo que, com o que eu ganhar sobre os jogadores, poderei viver bem sem gastar o dinheiro do meu canudo. Mais tarde, vou ver que o negócio é muito interessante, mas extremamente perigoso.
O domingo passou com uma rapidez espantosa.
– Já são 5 horas – diz Dega, que está com um lindo relógio -, temos que voltar para o campo.
Na saída, Dega me dá 500 francos para jogar pôquer, pois às vezes há boas partidas na nossa sala. Grandet me dá uma magnífica faca de mola da qual ele mesmo temperou o aço. É uma arma terrível.
– Fique sempre armado, dia e noite.
– E se eles me revistarem?
– Quase todos os guardas que revistam são árabes. Quando um homem é considerado perigoso, eles nunca encontram a arma, nem que a toquem.
– A gente vai se encontrar no campo – diz Grandet.
Antes de sair, Galgani me diz que já guardou um lugar para min no seu canto e que ficaremos juntos numa patota, repartindo as coisas. Quanto a Dega, não dorme no campo, mas num quarto do prédio da administração.
Já faz três dias que estamos aqui, mas, como passo as noites perto de Clousiot, ainda não me dei muito bem conta da vida desta sala de hospital, onde somos uns sessenta. Depois, Clousiot piorou muito, foi isolado num quarto onde já estava um enfermo grave. Chatal o entupiu de morfina. Receia que não agüente a noite.
Na sala ficam trinta camas de cada lado de uma passagem de 3 metros, quase todas ocupadas. Pois lampiões de petróleo iluminam o conjunto. Maturette diz:
– Lá no fundo estão jogando pôquer.
Eu vou até os jogadores. São quatro.
– Posso ser o quinto?
– Pode, sente. O cacife é de 100 francos. Para começar a jogar, precisa compra três cacifes, quer dizer, 300 francos. Aqui tem 300 francos de fichas.
Dou 200 para Maturette guardar. Um parisiense chamado Dupont diz para mim:
– Jogamos com o regulamento inglês, sem curinga. Conhece?
– Conheço.
– Então dê as cartas, é você que começa.
É incrível a rapidez com que estes homens jogam. A parada tem que ser muito rápida, senão a aposta é considerada “fora de tempo” e o jeito é agüentar firme. Aí é que descubro uma nova classe de forçados: os jogadores. Vivem do jogo, para o jogo, no jogo. Nada interessa a eles, a não ser jogar. Esquecem tudo: o que eles foram, sua pena, o que eles poderiam fazer para modificar sua vida. Que o parceiro seja um bom sujeito ou não, uma única coisa interessa: jogar
Jogamos a noite inteira. Paramos no café. Ganhei 1 300 francos. Vou para a minha cama, quando Paulo se aproxima de mim e me pede emprestados 200 cobres para continuar a jogar belote de dois. Ele precisa de 300 cobres e só tem 100.
– Toma 300. Depois a gente divide.
– Obrigado, Papillon, você é mesmo o sujeito de quem ouvi falar. Vamos ser amigos.
Estendo a mão, aperto-a, e ele vai embora todo contente. Clousiot morreu hoje de manhã. Num momento de lucidez, na véspera, tinha pedido a Chatal para não lhe dar morfina:
– Quero morrer consciente, sentado na minha cama, com meus amigos a meu lado.
É estritamente proibido penetrar nos quartos de isolamento, mas Chatal se responsabilizou e o nosso amigo pôde morrer nos nossos braços. Fechei os olhos dele. Maturette estava transtornado pela dor.
– Lá foi ele, o companheiro da nossa bela aventura. Vai ser jogado aos tubarões.
Quando ouvi estas palavras, “vai ser jogado aos tubarões”, fiquei gelado. De fato, não existe cemitério para os forçados nas ilhas. Quando um forçado morre, eles o jogam no mar, às 6 horas, quando o sol se põe, entre Saint-Joseph e Royale, num lugar infestado de tubarões.
A morte do meu amigo me torna o hospital insuportável. Mando dizer a Dega que vou sair depois de amanhã. Ele me manda um bilhete: “Peça a Chatal que consiga para você quinze dias de descanso no campo, assim terá tempo para escolher o emprego que convier”. Maturette vai ficar mais algum tempo. Talvez Chatal consiga tomá-lo como enfermeiro-assistente.