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A FUGA DOS ANTROPÓFAGOS

“Eles comeram a perna de pau!” “Um guisado de perna de pau, salta um!” Ou uma voz imitando voz de mulher: “Um pedaço de marmanjo bem grelhado, sem pimenta, traz para mim, mestre!”

Era bem raro, nas noites profundas, não ouvir gritar uma destas frases, quando não eram as três juntas.

Clousiot e eu ficamos intrigados com estas palavras lançadas na noite.

Nesta tarde, consigo a chave do mistério. Quem me conta é um dos protagonistas, chamado Marius de La Ciotat, especialista em cofres-fortes. Quando soube que conheci o pai dele, Titin, não teve medo de falar comigo.

Depois de lhe ter contado uma parte de minha fuga, pergunto, o que é normal:

– E você?

– Ora, eu me meti numa história suja. Estou com receio de pegar cinco anos por causa de uma simples evasão. Estou na fuga que foi apelidada de “fuga dos antropófagos”. O que você ouve, às vezes, gritar de noite: “Eles comeram, etc.” ou “Um guisado, etc”, é para os irmãos Graville.

“Tínhamos saído às 6 do quilômetro 42. Na fuga, estavam Dédé e Jean Graville, dois irmãos de trinta e 35 anos, lioneses, um napolitano de Marselha e eu, de La Ciotat, mais um cara de Angers, com uma perna de pau, e um rapaz de 23 anos, que lhe servia de mulher. A saída do Maroni foi boa, mas, no mar, nunca conseguimos acertar as coisas e, dentro de poucas horas, estávamos jogados na costa, na Guiana Holandesa.

“Não pudemos salvar nada do naufrágio, nem comida, nem coisa alguma. Estávamos no mato, por sorte com roupa. É preciso que saiba que este lugar não tem praia e que o mar penetra na floresta virgem. Esta é um emaranhado impossível de atravessar, por causa das árvores abatidas, quebradas em sua base ou desenraizadas pelo mar, cruzadas umas com as outras.

“Depois de caminhar um dia inteiro, a gente encontrou a terra seca. Nós nos dividimos em três grupos: os Graville, eu e Guesepi e o perna de pau com seu amiguinho. Para encurtar a história, tendo partido em direções diferentes, doze dias depois nos reencontrávamos, quase no lugar de onde saímos, os Graville, Guesepi e eu. O lugar estava cercado de pantanais e nós não encontramos nenhuma passagem. Nem é bom falar na situação do estômago. Passamos treze dias só comendo algumas raízes e brotinhos. Mortos de fome e de cansaço, arrasados, ficou decidido que eu e Guesepi, com o resto de nossas forças, voltaríamos para a beira do mar e amarraríamos uma camisa numa árvore, o mais alto possível, para ficar visível ao primeiro barco guarda-costa holandês, que não deixaria de passar por aí. Os Graville deviam, depois de descansar algumas horas, procurar o rastro dos dois outros.

“Isto devia ser fácil, porque a gente tinha combinado, no começo, que cada grupo deixaria um rastro de sua passagem com os galhos quebrados.

“Ora, algumas horas depois, eles vêem chegar o cara da perna de pau, sozinho.

“- Onde está o garoto?

“- Deixei muito longe, porque ele não podia mais caminhar.

“- É nojento de sua parte abandonar o garoto.

“- Foi ele quem quis que eu viesse de volta.

“A esta altura, Dédé notou que o único pé do perna de pau estava calçado com um sapato do rapaz.

“- E você, ainda por cima, deixou o menino descalço para pegar o sapato dele? Meus parabéns. E você parece em forma, não está como a gente. Você comeu, está na cara.

“- Sim, achei um macaco grande ferido.

“- Tanto melhor para você.

“E aí Dédé se levanta, a faca na mão, porque julgou compreender, vendo também seu bornal cheio.

“- Abra seu bornal. Que tem aí dentro?

“Ele abre o bornal e aparece um pedaço de carne.

“- Que é isto aí?

“- Um pedaço de macaco.

“- Canalha, matou o garoto para comê-lo!

“- Não, Dédé, juro. Ele morreu de cansaço e eu comi um pedacinho do seu corpo. Perdoa.

“Nem teve tempo de acabar de falar e já tinha a faca enfiada na barriga. Foi então, que, revistando-o, Dédé achou uma sacola de couro com fósforos e o respectivo acendedor.

“Imagine a raiva pelo fato de o homem, antes de se separar, não ter partilhado os fósforos! Imagine a fome dos caras. Bem, o fato é que não demorou para acenderem um fogo e digerirem o sujeito.

“Guesepi chega em pleno festim. Eles o convidam. Guesepi recusa. Na beira do mar, tinha comido caranguejos e peixes crus. E ele assiste, sem tomar parte, ao espetáculo dos Graville colocando sobre a brasa outros pedaços de carne e mesmo se servindo da perna de pau para alimentar o fogo. Portanto, Guesepi viu naquele dia e no seguinte os Graville comerem o homem e observou também as partes que devoraram: a barriga da perna, a coxa, as duas nádegas.

“Eu”, prossegue Marius, “estava na borda do mar, quando Guesepi veio me procurar. A gente encheu um chapéu com peixinhos e caranguejos e fomos cozinhar no fogo dos Graville. Não vi o cadáver, eles o arrastaram para longe. Mas vi vários bocados de carne ainda à margem do fogo, sobre a cinza.

“Três dias depois, um guarda-costas apanhou a gente e devolveu à penitenciária de Saint-Laurent-du-Maroni.

“Guesepi acabou abrindo o bico. Todo mundo nesta sala sabe do caso, mesmo os guardas. Estou contando a você porque é sabido de todos. E, como os Graville são elementos de mau caráter, aparecem as piadas que você ouve de noite.

“Oficialmente, somos acusados de evasão agravada por antropofagia. A desgraça é que, para me defender, precisaria acusar e isso não é possível. Todo mundo, inclusive Guesepi, nega na instrução. A gente diz que eles desapareceram no mato. Essa é minha situação, Papillon.”

– Lamento, meu chapa, porque, de fato, você não pode se defender senão acusando os outros.

Um mês depois, Guesepi foi assassinado por uma facada em pleno coração, durante a noite. Não foi sequer preciso perguntar quem deu a facada.

Esta a história autêntica dos antropófagos, que comeram o homem, assando-o com sua própria perna de pau, enquanto este mesmo homem havia deglutido o rapazinho que o acompanhava.

Nesta noite, deito-me num outro lugar da barra da justiça. Tomei o lugar de um homem que foi embora e, pedindo a todo mundo para dar uma chegadinha, Clousiot está junto de mim.

Do lugar onde estou deitado, mesmo com meu pé esquerdo preso à barra por uma argola, posso, ficando sentado, ver o que acontece no pátio.

A vigilância é cerrada; chegou a um ponto em que as rondas não têm ritmo. Sucedem-se sem cessar e outras chegam em sentido contrário a todo momento.

Meus pés já me agüentam muito bem e somente quando chove eu sinto dor. Logo, estou em condições de empreender uma nova ação, mas como? Esta sala não tem janelas, só uma imensa grade contínua, que cobre toda a largura dela e vai até o teto. Está situada de modo que o vento do nordeste penetra livremente Apesar de uma semana de observação, não consigo achar uma falha na vigilância dos guardas. Pela primeira vez, chego quase a admitir que eles conseguirão me botar na reclusão da Ilha de Saint-Joseph.

Disseram-me que ela é terrível. É chamada de “devoradora de homens”. Outra informação: jamais um homem conseguiu se evadir dela, nos 24 anos de sua existência.

Naturalmente, esta meia aceitação de ter perdido a partida me impele a olhar para o futuro. Tenho 28 anos e o capitão instrutor reclama cinco anos de reclusão. Vai ser difícil eu escapar com menos. Terei, por conseguinte, 33 anos quando sair da reclusão.

Ainda tenho muito dinheiro no meu canudo. Logo, se não caio fora, o que é provável, pelo que vejo, ao menos precisarei me manter com boa saúde. Cinco anos de isolamento completo é coisa difícil de suportar sem enlouquecer. Espero, portanto, me alimentar bem e disciplinar, desde o primeiro dia de minha pena, o meu cérebro, segundo um programa bem estabelecido e variado. Evitar o mais possível os sonhos fantasiosos e, sobretudo, os sonhos referentes à minha vingança. Eu me preparo, por conseguinte, desde agora, para atravessar como vencedor a terrível punição que me aguarda. Sim, eles é que acabarão perdendo. Sairei da reclusão fisicamente forte e sempre na plena posse de minhas faculdades físicas e mentais.

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