Nos primeiros dias, eles nos vestiram com algumas roupas usadas, mas rigorosamente limpas. Agora, cada vez que podem, compram para nós uma camisa nova, uma calça, uma cinta, um par de chinelos. Entre as mulheres que tratam de mim estão algumas moças muito novas, de tipo índio mas já misturado com sangue espanhol ou português. Uma se chama Tibisay e a outra Nenita. Compraram para mim uma camisa, uma calça e um par de chinelos, que elas chamam aspargate. É uma sola de couro sem salto, com um tecido trançado para cobrir o pé. Só o peito do pé fica coberto, os dedos permanecem de fora e uma tira do tecido prende o calçado ao calcanhar.
– Não é preciso perguntar de onde vocês vêm. Pelas tatuagens, sabemos que vocês são fugitivos da penitenciária francesa.
Isso me emociona ainda mais. Como! Sabendo que somos homens condenados por delitos graves, evadidos de uma prisão cuja severidade eles conhecem pelos livros ou jornais, essas humildes criaturas acham natural nos socorrer e nos ajudar? Vestir alguém quando a gente é rica ou abastada, dar de comer a um estrangeiro que tem fome quando nada falta em casa para a família e para si próprio, é de qualquer maneira uma demonstração de bondade. Mas dividir em dois um pedaço de broa de milho ou de mandioca, espécie de torta cozida no forno, preparada por suas próprias mãos, e que não é bastante para si mesmo e para os seus, repartir a refeição frugal, que mais serve de subalimentação que de nutrição, com um estrangeiro e, ainda mais, um fugitivo da justiça, isto é admirável!
Hoje de manhã, toda a gente, homens e mulheres, está silenciosa. Eles parecem estar contrariados e preocupados. Que se passa? Tibisay e Nenita estão perto de mim. Pela primeira vez nestes últimos quinze dias pude fazer a barba. Já há oito dias somos hóspedes dessa gente que tem o coração na mão. Havendo-se formado uma pele muito fina sobre as minhas queimaduras, arrisquei-me a raspar a barba. Por causa da barba, as mulheres só faziam uma vaga idéia da minha idade. Agora estão satisfeitas de verem que sou jovem e o dizem sem rebuços. Tenho 35 anos, mas aparento só 28 ou trinta. Sim, estou percebendo que todas essas mulheres e esses homens hospitaleiros estão preocupados por nossa causa.
– Que está acontecendo? Fale, Tibisay, que foi que houve?
– Estamos esperando as autoridades de Güiria, uma aldeia vizinha de Irapa. Aqui não há chefe civil (comissário), mas, não se sabe como, a polícia soube que vocês estão aqui, e está para chegar.
Uma preta forte e bonita se aproxima, acompanhada por um moço de torso nu, calça branca enrolada nos joelhos, de corpo hercúleo e bem proporcionado. Chama-se Negrita – é um modo carinhoso de chamar as mulheres de cor, muito usado na Venezuela, onde não existe nenhum preconceito racial ou religioso.
– Señor Enriquez - diz Negrita -, a polícia vai chegar. Não sei se é para seu bem ou para seu mal. Você não quer se esconder por algum tempo na montanha? Este meu irmão pode levá-lo para uma casinha onde ninguém poderá encontrá-lo. Tibisay, Nenita e eu levaremos todo dia comida para você e comunicaremos as notícias.
Muito emocionado, quero beijar a mão dessa boa mulher, mas ela não deixa e, com muito gentileza, me dá um beijo na face.
Chegam uns cavaleiros a galope. Todos trazem um machete, espécie de facão que serve para cortar a cana-de-açúcar e que fica pendurado no lado esquerdo da cinta, como se fosse uma espada; do lado direito, um revólver dentro de sua capa. Eles apeiam. Um homem de cara mongólica, olhos oblíquos de índio, pele bronzeada, alto e seco, de seus quarenta anos, com um grande chapéu de palha de arroz na cabeça, aproxima-se de nós.
– Bom dia. Eu sou o chefe civil (o delegado de polícia).
– Bom dia, meu senhor.
– Vocês aí, por que não avisaram antes que tinham cinco fugitivos de Caiena? Já faz oito dias que estão aqui, pelo que me disseram.
– É que estávamos esperando que pudessem andar e estivessem curados das queimaduras.
– Viemos buscá-los e levá-los para Güiria. Um caminhão vai chegar mais tarde.
– Um cafezinho?
– Pois não, muito obrigado.
Sentados em círculo, todos tomam café. Olho para o comissário da polícia e seus ajudantes. Eles não têm cara de ruins. Tenho a impressão de que estão obedecendo a ordens, contrariados.
– Vocês são evadidos da Ilha do Diabo?
– Não, viemos de Georgetown, na Guiana Inglesa.
– Por que não ficaram por lá?
– A vida lá é muito dura.
Sorrindo, ele diz:
– Vocês pensaram que estariam melhor aqui do que com os ingleses?
– É verdade, porque somos latinos que nem vocês.
Um grupo de sete ou oito homens se aproxima do nosso círculo. À sua frente está um homem de cinqüenta anos, cabelos brancos, 1 metro e 75 ou mais de altura, pele cor de chocolate claro. Olhos imensos, negros, denotando inteligência e ânimo pouco comuns. Sua mão direita está colocada sobre o cabo de um machete pendurado na cinta.
– Chefe, que vai fazer com esses homens?
– Vou levá-los para a prisão de Güiria.
– Por que não os deixa viver aqui conosco? Cada família tomará conta de um.
– Não é possível, é ordem do governador.
– Mas eles não praticaram nenhum delito em território venezuelano.
– Sei disso. Mas, apesar de tudo, são homens muito perigosos; para terem sido condenados ao presídio de Caiena, devem ter cometido crimes muito graves. Além disso, são fugitivos sem documentos de identidade e a polícia francesa certamente vai pedir a extradição deles, quando souber que estão na Venezuela.
– Nós queremos que fiquem aqui com a gente.
– Não é possível, é ordem do governador.
– Tudo é possível. Que é que o governador sabe da vida desses desgraçados? Um homem nunca está completamente perdido. Qualquer que seja o mal que ele possa ter feito no passado, em certo momento da sua vida ele tem uma chance de se recuperar e de se transformar num homem bom e útil à sociedade. Não é verdade, digam vocês todos?
– É verdade – respondem os homens e as mulheres em coro. – Deixem os coitados aqui com a gente, vamos ajudá-los a refazer a vida deles. Em oito dias, já os conhecemos bem e estamos certos de que são bons rapazes.
– Gente mais civilizada do que nós colocou eles no calabouço, para que não pudessem mais praticar o mal – diz o comissário.
– Chefe, o que é que o senhor chama de civilização? O senhor pensa que, porque nós temos elevadores, aviões e trens subterrâneos, isso prova que os franceses são mais civilizados do que essa gente que nos recebeu e tratou? Pois fique sabendo que na minha opinião há mais civilização humana, mais riqueza de alma, mais compreensão em cada membro desta comunidade, que vive com simplicidade no meio da natureza, embora desprovida dos benefícios da civilização mecânica. Mas, se eles não têm o conforto do progresso, têm o sentido da caridade cristã muito mais desenvolvido que os pretensos civilizados do mundo. Prefiro um analfabeto deste povoado a um doutor em letras da Sorbonne de Paris, se este tiver um dia a alma do promotor que me fez condenar. O primeiro é sempre um homem, o segundo esqueceu que é.
– Eu compreendo, mas tenho que executar ordens. Está chegando o caminhão. Por favor, me ajude, tenha uma atitude sensata, para que tudo se passe sem incidentes.
Cada grupo de mulheres abraça aquele de que elas trataram. Tibisay, Nenita e Negrita me abraçam chorando. Cada homem nos aperta a mão, demonstrando assim o seu sentimento de tristeza pela nossa volta à prisão.
Até logo, gente de Irapa, gente nobre que teve a coragem de enfrentar e censurar as próprias autoridades para defender uns pobres-diabos até ontem desconhecidos. O pão que comi com vocês, o pão que vocês tiveram a coragem de tirar da própria boca para nos dar, esse pão, símbolo da fraternidade humana, foi para mim o sublime exemplo dos tempos antigos: “Não matar, fazer o bem aos que sofrem mais, mesmo à custa de privações. Ajudar sempre quem é mais infeliz do que você”. E, se mais tarde eu alcançar a liberdade, ajudarei os outros cada vez que puder, conforme me ensinaram os primeiros venezuelanos que encontrei.