Carregado, encontro-me logo na minha cela, onde quatro fortes enfermeiros me puseram depressa e sem contemplações. Grito como um perdido que Ivanhoé me roubou a carteira com a cédula de identidade. Desta vez, consegui! O médico decidiu me classificar como irresponsável por meus atos. Todos os guardas estão de acordo em reconhecer que sou um louco pacífico, mas que tenho momentos muito perigosos. Ivanhoé está com um belo curativo na cabeça. Parece que a abri em mais de 8 centímetros. Felizmente, ele não passeia nas mesmas horas que eu.
Pude falar com Salvidia. Já conseguiu a duplicata da chave da despensa onde os tonéis estão guardados. Está tentando reunir fio de ferro suficiente para uni-los. Digo-lhe que tenho medo de que os fios de ferro rebentem devido à pressão que os tonéis irão fazer no mar; que seria melhor ter cordas, seriam mais elásticas. Vai tentar arranjá-las, deve haver cordas e fios de ferro. É preciso que ele faça, também, três chaves: uma da minha cela, uma do corredor que dá para ela e uma da porta principal do asilo. As rondas são pouco freqüentes. Um só guarda para cada turno de quatro horas. Das 9 horas à 1 hora da manhã e da 1 às 5 horas. Dois dos guardas, quando estão de vigia, dormem o tempo todo e não fazem nenhuma ronda. Contam com o condenado-enfermeiro que fica de turno com eles. Portanto, tudo vai ser questão de paciência. Um mês, no máximo, para darmos o golpe.
O guarda-chefe me deu um cigarro ruim, aceso, quando entrei no pátio. Mesmo ruim, ele me parece delicioso. Olho esse rebanho de homens nus, cantando, chorando, fazendo gestos desordenados, falando sozinhos. Todos molhados ainda do banho que cada um toma antes de entrar no pátio, seus corpos martirizados por surras recebidas ou por pancadas que eles mesmos se deram, marcas dos cordões da camisa-de-força apertada demais. É bem o espetáculo do fim do caminho da podridão. Quantos desses loucos foram reconhecidos como responsáveis por seus atos pelos psiquiatras da França? Titin – a gente o chama de Titin – é do meu grupo de 1933. Matou um cara em Marselha, depois pegou um fiacre, pôs sua vítima dentro, mandou que o cocheiro tocasse para um hospital e, ao chegar lá, disse: “Tomem, cuidem dele, acho que está doente”. Preso na mesma hora, os jurados tiveram o descaramento de não lhe reconhecer nenhuma atenuante, nem ao menos a da irresponsabilidade. No entanto, é preciso que a gente já esteja biruta para fazer um negócio desses. O mais imbecil dos caras, normalmente, saberia que ia ser fisgado. Aí está Titin, sentado a meu lado. Tem uma disenteria permanente. É um verdadeiro cadáver ambulante. Olha-me com seus olhos cinzentos, sem inteligência. Diz:
– Tenho macaquinhos na barriga, companheiro. Há uns que são maus. Eles me mordem os intestinos e é por isso que cago sangue, quando eles estão zangados. Outros, uma raça de peludos, bem cheios de pêlos, têm as mãos suaves como a pluma. Eles me acariciam docemente e impedem que os macacos maus me mordam. Quando esses macaquinhos bons querem me defender, não cago sangue.
– Você se lembra de Marselha, Titin?
– Puxa, se me lembro de Marselha. Muito bem, até. A praça da Bolsa com os botecos e a rapaziada…
– Você lembra do nome de alguns? O Ange, o Lucre? O Gravat? Clement?
– Não, não me lembro de nomes, só me lembro de um cocheiro sacana que me levou ao hospital com um amigo doente e que disse que eu era o causador da doença do meu amigo. É só.
– E os seus amigos?
– Não sei.
Pobre Titin, dou-lhe minha ponta de cigarro e me levanto com uma imensa piedade no coração por esse pobre ser que vai morrer como um cão. Sim, é muito perigoso coabitar com loucos, mas o que fazer? Em todo caso, é o único modo, suponho, de preparar uma fuga sem condenação.
Salvidia está quase pronto. Já tem duas das chaves, só falta a da minha cela. Arranjou também uma corda muito boa e, além disso, fez uma outra com os fios do tecido da maca que, segundo me disse, são formados por cinco outros fios. Por esse lado, tudo vai bem.
Tenho pressa de passarmos à ação, pois é realmente duro continuar desempenhando meu papel nesta comédia. Para ficar na parte do asilo em que se encontra minha cela, tenho que arranjar uma crise de vez em quando.
Arranjei uma tão bem representada, que os guardas-enfermeiros me puseram numa banheira com água muito quente e me deram duas injeções de brometo. A banheira é coberta por um tecido muito resistente, de modo que não posso sair. Só minha cabeça fica de fora, por um buraco. Estou nesse banho há mais de duas horas, com essa espécie de camisa-de-força, quando entra Ivanhoé. Fico terrificado pelo modo como aquele bruto me olha. Tenho um medo tremendo de que ele me estrangule. Não posso sequer me defender, já que estou com os braços debaixo do pano.
Ele se aproxima de mim, seus grandes olhos me fitam atentamente, tem o ar de procurar saber onde já viu essa cabeça que emerge dali como de um buraco de guilhotina. Seu hálito e seu cheiro de podridão me inundam o rosto. Tenho vontade de gritar por socorro, mas temo torná-lo ainda mais furioso com meus gritos. Fecho os olhos e espero, certo de que ele vai me estrangular com suas grandes mãos de gigante. Não vou esquecer tão cedo esses segundos de terror. Enfim, ele se afasta de mim, anda pela sala, depois vai até os registros da água. Fecha a água fria e abre inteiramente a água fervente. Berro, como um perdido, pois estou a ponto de cozinhar completamente. Ivanhoé sai. Há vapor na sala inteira, sufoco-me respirando-o e faço esforços sobre-humanos, em vão, para tentar rebentar este pano miserável. Enfim, chegam em meu socorro. Os guardas viram o vapor que saía pela janela. Quando me tiram daquela água fervente, tenho queimaduras horríveis e sofro como um danado. Principalmente nas coxas e nas partes onde a pele saiu. Besuntado de ácido pícrico, deitam-me na pequena sala de enfermaria do asilo. Minhas queimaduras são tão graves, que resolvem chamar o doutor. Algumas injeções de morfina me ajudam a passar as primeiras 24 horas. Quando o médico me pergunta o que aconteceu, digo-lhe que um vulcão surgiu na banheira. Ninguém compreende o que aconteceu. E o guarda-enfermeiro acusa o que preparou o banho de ter regulado mal as saídas de água.
Salvidia acaba de sair, depois de me untar com pomada pícrica. Está pronto e me faz reparar que é uma sorte eu estar na enfermaria, pois, caso a fuga fracasse, poderemos voltar para essa parte do asilo sem sermos vistos. Ele deverá fazer rapidamente uma chave da enfermaria. Acaba de tirar o molde num pedaço de sabão. Amanhã teremos a chave. Eu é que devo dizer o dia em que me sentir suficientemente curado para aproveitar o primeiro turno de um dos guardas que não fazem ronda.
Marco para esta noite, durante a guarda da 1 às 5 horas da manhã. Salvidia não está de serviço. Para ganhar tempo, ele vai esvaziar o tonel de vinagre às 11 horas da noite. O outro, o de óleo, vamos rolá-lo cheio, pois o mar está muito ruim e talvez o óleo possa nos servir para acalmar as vagas quando o derramarmos na água.
Tenho uma calça de sacos de farinha cortada nos joelhos e um blusão de lã, uma boa faca na cintura. Tenho também um saco impermeável que vou pendurar no pescoço; nele estão cigarros e um isqueiro de estimação. Salvidia preparou uma mochila impermeável com farinha de mandioca embebida em óleo e açúcar. Mais ou menos uns 3 quilos, me disse ele. Ê tarde. Sentado em minha cama, espero meu companheiro. Meu coração dá fortes pancadas. Dentro de alguns instantes, a fuga vai começar. Que a sorte e Deus me favoreçam! Que eu consiga sair para sempre do caminho da podridão!
É estranho: dedico ao passado apenas um pensamento rápido, que vai para meu pai e minha família. Nenhuma imagem do tribunal, dos jurados ou do promotor.
No momento em que a porta está se abrindo, relembro, a contragosto, Matthieu carregado de pé pelos tubarões.
– Papi, a caminho!