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Esta ciência certa, considerada pelos outros rapazes como ridícula em si mesma, levou-os a combinar, servindose da preocupação que o Saraiva tinha de declamador, uma cena cómica, destinada a, de vez, pôr o Saraiva em salmoura social. Sabendo o horror do ridículo que estava latente naquela constante preocupação de que não era enganado, combinaram com várias raparigas das suas relações, de boas famílias e condição decentíssima, uma sessão em casa dos pais de umas délas, para a qual convidaram o Saraiva para declamar. E estava combinado que, apresentado o Saraiva e convidado a mostrar seus dotes de declamador, eles fossem, por fim, reconhecidos com uma gargalhada geral. Desta, fixaram bem, o Saraiva se não escaparia, e ficariam pagos de tanta irritação de certeza.

Expuseram ao Saraiva que havia várias senhoras que gostariam de o ouvir declamar, pois lhes constara o que valia na matéria, e com ele estabeleceram que o apresentariam em casa dessas senhoras, podendo ele aparecer em tal noite, e a tais horas.

Grato, o Saraiva acedeu e a combinação ficou feita. Sucede, pórem, que, chegado a casa, comegou a meditar no convite, e, desde logo, a desconfiar dele. «Ali há coisa», pensou o Saraiva. E, sozinho, diante do espelho, levou o indicador direito ao olho direito, no gesto baixante da esperteza, «Mas eu sou o Saraiva!», apontou para si mesmo.

E meditou, «Que diabo será a partida?». Não tardou que descobrisse. Tratava-se de encher uma casa qualquer de uma quantidade de meretrizes dispostas com aparência de senhoras e meninas, e de o convidar (a ele Saraiva!) para ir fazer diante délas o papel de recitador. Conclusão lógica, conclusão natural. E o Saraiva tomou mentalmente as suas precauções.

Chegou a noite, e chegou o Saraiva. E, junto com os vários camaradas, foram dar à casa onde estavam reunidas as senhoras todas que os esperavam. Para entrada e deslumbramento, os apresentantes, aberta súbitamente a porta da sala, que se revelou cheia de senhoras, apresentaram, «Minhas senhoras, o sr. Saraiva!», com o ar de quem apresenta um dos homens célebres do mundo.

Então o Saraiva, álacre, deu um pulo para o meio da sala, e braços abertos, gritante e alegre, bradou para as senhoras todas: Eh, putedo!

E depois, voltando-se a rir para os apresentantes lívidos, inclinou a cabeça e levou à eterna pálpebra direita o eterno indicador direito, «Vocês esqueceram-se que eu sou o Saraiva»…

Moralidade:

Não ser Saraiva.

Na dúvida ser Saraiva, porque aqui o Saraiva foi o parvo e os outros é que ficaram atrapalhados.

Quando uma nação eré firmemente em si mesma, humilha os outros ainda quando se engana e é ridícula. Coisa por cousa, mais vale ser Saraiva. Porque é preciso não esquecer o resultado prático de tudo isto. As raparigas ficaram insultadas, os rapazes ficaram envergonhados: quem ficou vencedor foi o Saraiva.

Eu, o doutor

Entrei uma tarde numa camisaria de onde gastava, com o fim imaginado de comprar uma gravata. O caixeiro que estava livre de freguês, e que há muito me conhecia, cumprimentou-me alegremente: «Boa tarde, senhor doutor».

«Não sou doutor», disse-lhe, e era a verdade. «Porque é que me julga doutor?»

«Ah, eu realmente julgava…», respondeu ele limpidamente.

Pedi gravatas, escolhi a que preferi, paguei. Nesta altura, o outro caixeiro, que também de há muito me conhecia, veio para ao pé do colega.

«Boa tarde», disse eu para ambos.

Os dois caixeiros inclinaram-se amáveis e sincrónicos, e, como um só, disseram:

«Boa tarde, senhor doutor, e muito obrigado».

Moralidade:

Quando a opinião nos faz doutores, doutores temos que ser. Na vida social, somos o que os outros nos julgam, e não o que até fingidamente somos. A nossa personalidade social, para todos, ou histórica, para os célebres, é uma ideia de nós que nada tem de nós. O estadista que saiba saber isto tem a chave do dominio do mundo. Pode, é claro, faltar-lhe a porta; isso, porém, é já destino.

31/1/1932

O burro e as duas margens

É costume contar-se às crianças, quando começam a estar em idade de começar a ser estúpidas, uma história a propósito de um burro que chega à margem de um rio e não consegue passar para a outra margem.

O rio não tem ponte, o burro não sabe nadar, não há barco que o transporte. O que faz o burro? Depois de algum tempo de pensar, a criança diz que desiste. E então a pessoa adulta, que lhe pôs a adivinha, diz: O mesmo fez o burro. O que devia dizer era: És como o burro, porque assim é que a graça tem graça, se é que a tem.

Mas a história não se passou assim, e foi o burro mesmo que ma contou. O burro chegou à margem do rio, e queria passar para a outra margem. Verificou, efectivamente, e nesse particular a história é verídica como se narra, que (a) não havia ponte, (b) não havia barco, (c) ele, burro, não sabia nadar.

Então o burro pensou: O que faria um homem no meu caso? E, depois de pensar, pensou: Desistia. Pois bem, decidiu: Sou como o homem.

Porque, nesta adivinha, ninguém pensou numa coisa: é que o homem desistia também.

Moralidade:

A política partidária é a arte de dizer a mesma coisa de duas maneiras diferentes. O melhor é dizer em segundo lugar, porque como é o homem que faz a adivinha, adiante vai o burro.

O Soares e o Pereira

O Soares e o Pereira, empregados do mesmo escritório, eram inimigos de alma. Não havia questão de serviço, ainda que rigorosamente não pudesse surgir conflito entre os dois, em que não surgisse conflito entre os dois. E, embora nunca seguissem por aquelas vias chamadas de facto, fervia em pouco tempo a descompostura mútua. De besta para cima e para baixo, todos os arredores de malandro, com passagem por gatuno e grande escala por tudo, encontrarem-se era discordarem, olharem-se era a primeira palavra de se descomporem.

Um dia o Soares, que era o mais inteligente e por isso o mais estúpido dos dois, referindo, fora do escritório, a um amigo as cenas habituais com o Pereira, recebeu desse a pergunta: «Mas porque diabo é que tu não o esmagas com uma coisa pior que todas as piadas?» «Que coisa?», perguntou o Soares; «porrada?». «Não, não digo isso… Melhor que isso: o silêncio… Ele tem mais piada que tu; pois bem, arranja mais desprezo do que ele. Ele insulta mais, e tu olhas para ele e não dizes nada. Ele insulta mais, e tu na mesma. Ele espuma e esbraveja, e tu idem e igualmente zero. Verás que não há piada que ele possa dizer que valha o que tu não dizes. O que tu não dizes pode ser tudo; o que ele diz não pode ser senão o que ele diz, e, se calhar, muitas vezes nem isso é».

O Soares pensou e achou razão, pelo menos provisória, ao conselho. E, ao contrário do que a prudência manda, seguiu-o. Mas, como é costume suceder quando se não segue a prudência, fez bem.

Foi logo no dia seguinte, porque era todos os dias, e o dia seguinte não era feriado. Surgiu um incidente que o Pereira fez o Soares ter feito surgir. E, sob os ouvidos fitantes do outro pessoal, o Pereira começou. Os substantivos do costume uniram-se aos adjectivos da vizinhança, e o carácter, habilitações, possibilidades penais, e outros atributos de um Soares de retórica, fulguraram no discurso. A certa altura, como o Soares não dissesse nada, mas olhasse para o orador com uma atengáo despreocupada e vaga, o Pereira começou a afrouxar. Seguiu a cena, de calado a pasmo, e o Pereira, afrouxando cada vez mais, foi-se tornando lívido. Ao fim de cinco minutos estava quase mudo e com a voz e a expressão do olhar em vésperas de lágrimas. Então engoliu um pouco; e, dirigindo-se ao Soares numa voz trémula, disse: «Ó Soares, você está zangado comigo?»

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