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E vem querer tirar-me estas convicções o professor Boro, da Universidade de Tóquio! Não mas tira. Não é para ser enganado pela primeira realidade que se me atira aos olhos que eu tenho gasto minutos distensos na contemplação científica e estéril de bules e chávenas japonesas. O mais provável, a respeito deste Boro, é que nascesse em Lisboa e se chame José. Do Japão, ele? Nunca.

Se ao menos achei japonesa a sua cara? Absolutamente nada. Basta dizer que era real e existiu ali diante de mim, duas dolorosas horas, em plena ocupaço inestética de todas as dimensões aproveitáveis (felizmente só três) do espaço autêntico. A sua cara parecia-se, é certo, com certas fotografias de «japoneses» que as ilustrações trouxeram há anos, e de vez em quando reincidindo trazem; mas toda a gente que sabe o que é o Japão ppor nunca lá ter ido sabe de cor que aquilo não são japoneses. E, de mais a mais, essas ilustrações eram principalmente de generáis, almirantes, e operações guerreiras. Ora é absolutamente impossível que no Japão haja generáis, almirantes e guerra. Como, de resto, fotografar o Japão e os japoneses? A primeira coisa real que há no Japão é o facto de ele estar sempre longe de nós, estejamos nós onde estivermos. Não se pode lá ir, nem eles podem vir até nós. Concedo, se me forgarem a isso, que existam um Tóquio e um Iocoama. Mas isso não é no Japão, é apenas no Extremo Oriente.

O resto da minha vida, doravante, será escrupulosamente dedicado a esquecer o professor Boro e que ele — impronunciável absurdo! — se sentou na cadeira que está agora, na realidade de madeira, defronte de mim. Considero doentio esse facto, alucinatório talvez, e entrego-me com assiduidade a não me lembrar dele mais. Um japonês verdadeiro aqui, a falar comigo, a dizer-me coisas que nem mesmo eram falsas ou contraditórias! Não. Ele chama-se José e é de Lisboa. Falo simbolicamente, é claro. Porque ele pode chamar-se Macwhisky e ser de Inverness. O que ele não era decerto era japonês, real, e possível visitante de Lisboa. Isso nunca. Desse modo não havia ciência, se o primeiro ocasional nos viesse negar o que os nossos estudos assíduos nos fizeram ver.

Professor Boro, da Universidade de Tóquio? De Tóquio? Universidade de Tóquio? Nada disso existe. Isso é uma ilusão. Os inferiores e cábulas de nós construíram, para se não desorientarem, um Japão à imagem e semelhança da Europa, desta triste Europa tão excessivamente real. Sonhadores! Alucinados!

Basta-me olhar para aquela bandeja, pegar cariciosamente com o olhar naquele serviço de chá. Depois venham falar-me em Japão existente, em Japão comercial, em Japão guerreiro! Não é para nada que, através de esforgos consecutivos, a nossa época ganhou o duro nome de científica. Japoneses com vida real, com três dimensões, com uma pátria com paisagens de cores autênticas! Lérias para entretenimento do povo, mas que a quem estudou não enganam…

Crónica decorativa II

Soube hoje uma coisa que me desgostou — que a Pérsia realmente existe. Eu julgava que a Pérsia era apenas o nome especial que se dava à beleza de certos tapetes. Agora parece que um explorador moderno afirma a sua existência. Se bem que os exploradores modernos sejam, como em geral todos os homens de ciência, susceptíveis de erro mais que os outros homens, disse-me há pouco um jornalista que o facto merece crédito. A ser verdade (eu ainda hesito) resta saber que nome se vai dar de hoje em diante aos tapetes persas. E a poesia persa — a propósito — que nova denominado vai ter?

Serve-me este assunto de tema para expor certas opiniões que há muito tempo uso sobre o modo extraordinariamente intenso como, de há tempo para cá, a ciência grassa e o espírito científico nos ataca. Se daqui a pouco o pólo sul vai também desatar a ser real, não sei a que ponto chegaremos. Breve existirá tudo e não está longe o dia, talvez, em que basta sonharmos uma rainha medieval para ela nos entrar, contemporânea e anatomizável, pela porta dentro, depois de bater à realidade da campainha e se fazer anunciar pela presença beiroa da criada.

Afirmou-me um amigo meu, o qual, por culto, me merece um crédito dubitante, que lera em livro de Guyau que um Keats brindara coisas más para a memória de Newton porque ele fizera qualquer coisa como descobrir leis que tinham que ver com os astros. Se ponho certo vago na minha descrição é porque não tenho a mínima ideia do que Newton fez ou descobriu. O facto, agora, é o brinde de Keats. Esse brinde contém uma intuição justa. A aplicação é que é péssima. Não fez mal a ninguém descobrir as leis dos astros. Eles sempre foram visíveis. E a sua boa qualidade de serem longínquos, não lha tirou a descoberta de Newton, fosse ela qual fosse; e, de mais a mais, essa descoberta, sendo matemática e portanto totalmente com feição de falsa, fez, do mal inevitável, o menos possível.

Desviei-me um parágrafo do assunto, para poder ver bem o que me convinha ter sempre pensado dele. Estou agora de posse da ideia de que sempre concordei com a essência do brinde de Keats. É necessário, pondo o problema no campo político e social (aqui vem a minha originalidade), estudar como se deve coibir e disciplinar utilmente a acção da investigação, da exploração e da ciência em geral.

Que a existência de laboratórios seja uma mancha sobre a nossa civilização — ninguém de ânimo firme o nega, ou também que as perigosas facilidades dadas ao trânsito por térras secularmente entregues à tradicional actividade dos salteadores, e mares donde o carácter revolucionário da civilização moderna baniu a instituição dos piratas, seja um dos mais licenciosos resultados da Revolução Francesa e do espírito anarquista em geral. Mas, em lugar de se atentar para estas deficiências de disciplina e de ordem que repugnam tanto ao espírito positivo como ao são critério expresso na máxima de São Tomás de Aquino — eadem res generatur et conservantur in esse —, o exagerado amor ao sensacionalismo da vida moderna, e a doentia tendência para acreditar ñas informações dos jornais têm favorecido, sem que alguém pense em as dever evitar, o desenvolvimento do espírito científico.

Por ora as consequências da fraqueza das instituições democráticas têm sido notadas. Salvo o facto — contestável, de resto, manda a verdade que se diga — da descoberta do pólo norte, e agora este, recentíssimo, da afirmação da existência da Pérsia, poucas têm sido as consequências notáveis. Mas se repararmos o que esses dois factos já por si representam, de chofre nos ocorrerá qual o perigo crescente e assolapado que nos confronta e breve, visível e inevitável, se erguerá diante de nós.

Urge para já a constituição de uma Liga Anticientífica onde se defendam os impreteríveis direitos que as térras desconhecidas têm de permanecer desconhecidas, e os países inexistentes de não verem de um día para o outro violada a sua neutralidade e forçados a entrar ñas campanhas da realidade. Nem se pode dizer que isto esteja fora dos bons princípios liberáis. O partido liberal inglês — partido representativo, mais do que nenhum, do liberalismo — teve quase sempre por doutrina (salvo, é claro, nos casos de utilidade nacional), por inviolável, a vida e instituições dos outros países. E ao mesmo tempo, esta doutrina é a sã e pura atitude conservadora, dado que o que se pretende defender é a Tradição, a Ordem, a Disciplina Social.

Na nossa política tem-se visto recentemente o resultado desta táctica revolucionária. Um grupo de dementados tem recentemente insistido pela implantação da monarquia no nosso país. Atentam assim, de ânimo leve, contra o carácter tradicional da monarquía, que é o de existir belamente e entusiasticamente — e isso só se pode dar estando ele sempre no passado e por isso acima das paixões e das flutuações do sentimentalismo humano. E atentam contra o sagrado princípio da Tradição, que exige e sempre exigiu que a Tradição ficasse no passado, sem que o presente lhe tocasse ou a atingisse, servindo-se dela.

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