Apontou para mim o indicador direito súbito.
— Foi o que eu fiz!
Retirou logo o gesto, e continuou.
— Procurei ver qual era a primeira, a mais importante, das ficções sociais. Seria a essa que me cumpria, mais que a nenhuma outra, tentar subjugar, tentar reduzir à inactividade. A mais importante, da nossa época pelo menos, é o dinheiro. Como subjugar o dinheiro, ou, em palavras mais precisas, a força, ou a tirania do dinheiro? Tornando-me livre da sua influência, da sua força, superior portanto à sua influência, reduzindo-o à inactividade pelo que me dizia respeito a mim. Pelo que me dizia respeito a mim, compreende você? porque eu é que o combada; se fosse reduzi-lo à inactividade pelo que respeita a toda a gente, isso não seria já subjugá-lo, mas destruí-lo, porque seria acabar de todo com a ficção dinheiro. Ora eu já lhe proveí que qualquer ficção social só pode ser «destruída» pela revolução social, arrastada com as outras na queda da sociedade burguesa.
«Como podía eu tornar-me superior à força do dinheiro? O processo mais simples era afastar-me da esfera da sua influência, isto é, da civilização; ir para um campo comer raízes e beber água das nascentes; andar nu e viver como um animal. Mas isto, mesmo que não houvesse dificuldade em fazê-lo, não era combater uma ficção social; não era mesmo combater: era fugir. Realmente, quem se esquiva a travar um combate não é derrotado nele. Mas moralmente é derrotado, porque não é derrotado nele. Mas moralmente é derrotado, porque não se bateu. O processo tinha que ser outro — um processo de combate e não de fuga. Como subjugar o dinheiro, combatendo-o? Como furtar-me à sua influência e tirania, não evitando o seu encontro? O processo era só um — adquiri-lo, adquiri-lo em quantidade bastante para lhe não sentir a influência; e em quanto mais quanttidade o adquirisse, tanto mais livre eu estaria dessa influência. Foi quando vi isto claramente, com toda a força da minha convicção de anarquista, e toda a minha lógica de homem lúcido, que entrei na fase actual — a comercial e bancária, meu amigo — do meu anarquismo.
Descansou um momento da violência, novamente cres-cente, do seu entusiasmo pela sua exposição. Depois continuou, ainda com um certo calor, a sua narrativa.
— Ora você lembra-se daquelas duas dificuldades lógicas que eu lhe disse que me haviam surgido no princípio da minha carreira de anarquista consciente?… E você lembra-se de eu lhe dizer que naquela altura as resolví artificialmente, pelo sentimento e não pela lógica? Isto é, você mesmo notou, e muito bem, que eu não as tinha resolvido pela lógica…
— Lembro-me, sim…
— E você lembra-se de eu lhe dizer que mais tarde, quando acertei por fim com o verdadeiro processo anarquista, as resolví então de vez, isto é, pela lógica?
— Sim.
— Ora veja como ficaram resolvidas… As dificuldades eram estas: não é natural trabalhar por qualquer coisa, seja o que for, sem uma compensação natural, isto é, egoísta; e não é natural dar o nosso esforço a qualquer fim sem ter a compensação de saber que esse fim se atinge. As duas dificuldades eram estas; ora repare como ficam resolvidas pelo processo de trabalho anarquista que o meu raciocínio me levou a descobrir como sendo o único verdadeiro… O processo dá em resultado eu enriquecer; portanto, compensação egoísta. O processo visa ao conseguimento da liberdade; ora eu, tornando-me superior à força do dinheiro, isto é, libertando-me déla, consigo liberdade. Consigo liberdade só para mim, é certo; mas é que, como já lhe proveí, a liberdade para todos só pode vir com a destruição das ficções sociais, pela revolução social, e eu, só por mim, não posso fazer a revoluto social. O ponto concreto é este: viso liberdade, consigo liberdade: consigo a liberdade que posso, porque, é claro, não posso conseguir a que não posso… E veja você: á parte o raciocinio que determina este processo anarquista como o único as dificuldades lógicas, que se podem opor a qualquer processo anarquista, mais prova que ele é o verdadeiro.
«Pois foi este o processo que eu segui. Meti ombros à empresa de subjugar a ficção dinheiro, enriquecendo. Consegui. Levou um certo tempo, porque a luta foi grande, mas consegui. Escuso de lhe contar o que foi e o que tem sido a minha vida comercial e bancária. Podia ser interessante, em certos pontos sobretudo, mas já não pertence ao assunto. Trabalhei, lutei, ganhei dinheiro; trabalhei mais, lutei mais, ganhei mais dinheiro; ganhei muito dinheiro por fim. Não olhei a processos — confesso-lhe, meu amigo, que não olhei a processos; empreguei tudo quanto há — o açambarcamento, o sofisma financeiro, a própria concorréncia desleal. O quê?! Eu combatía as ficções sociais, imorais e antinaturais por excelência, e havia de olhar a processos?! Eu trabalhava pela liberdade, e havia de olhar às armas com que combatía a tirania?! O anarquista estúpido, que atira bombas e dá tiros, bem sabe que mata, e bem sabe que as suas doutrinas não incluem a pena de morte. Ataca uma imoralidade com um crime, porque acha que essa imoralidade vale um crime para se destruir. Ele é estúpido quanto ao processo, porque, como já lhe mostrei, esse processo é errado e contraproducente como processo anarquista; agora quanto à moral do processo ele é inteligente. Ora o meu processo estava certo, e eu servia-me legitimamente, como anarquista, de todos os meios para enriquecer. Hoje realizei o meu limitado sonho de anarquista prático e lúcido. Sou livre. Faço o que quero, dentro, é claro, do que é possível fazer. O meu lema de anarquista era a liberdade; pois bem, tenho a liberdade, a liberdade que, por enquanto, na nossa sociedade imperfeita, é possível ter. Quis combater as forças sociais; combati-as, e, o que é mais, venci-as.
— Alto lá! alto lá! — disse eu. — Isso estará tudo muito bem, mas há uma coisa que você não viu. As condições do seu processo eram, como você provou, não só criar liberdade, mas também não criar tirania. Ora você criou tirania. Você como açambarcador, como banqueiro, como financeiro sem escrúpulos — você desculpe, mas você é que o disse —, você criou tirania. Você criou tanta tirania como qualquer outro representante das ficções sociais, que você diz que combate.
— Não, meu velho, você engana-se. Eu não criei tirania. A tirania, que pode ter resultado da minha acção de combate contra as ficções sociais, é uma tirania que não parte de mim, que portanto eu não criei; está ñas ficções sociais, eu não ajuntei a elas. Essa tirania é a própria tirania das ficções sociais; e eu não podia, nem me propus, destruir as ficções sociais. Pela centésima vez lhe repito: só a revoluçã social pode destruir as ficões sociais; antes disso, a acção anarquista perfeita, como a minha, só pode subjugar as fições sociais, subjugá-las em relação só ao anarquista que põe esse processo em prática, porque esse processo não permite uma mais larga sujeição dessas ficções. Não é de não criar tirania que se trata: é de não criar tirania nova, tirania onde não estava. Os anarquistas, trabalhando em conjunto, influenciando-se uns aos outros como eu lhe disse, criam entre si, fora e à parte das ficções sociais, uma tirania; essa é que é uma tirania nova. Essa, eu não a criei. Não a podia mesmo criar, pelas próprias condições do meu processo. Não, meu amigo; eu só criei liberdade. Libertei um. Libertei-me a mim. É que o meu processo, que é, como lhe proveí, o único verdadeiro processo anarquista, me não permitiu libertar mais. O que pude libertar, libertei.
— Está bem… Concordo… Mas olhe que, por esse argumento, a gente quase que é levada e crer que nenhum representante das ficções sociais exerce tirania…
— E não exerce. A tirania é das ficções sociais e não dos homens que as encamam; esses são, por assim dizer, os meios de que as ficções se servem para tiranizar, como a faca é o meio de que se pode servir o assassino. E você decerto não julga que abolindo as facas abóle os assassinos… Olhe… Destrua você todos os capitalistas do mundo, mas sem destruir o capital… No dia seguinte o capital, já ñas mãos de outros, continuará, por meio desses, a sua tirania. Destrua, não os capitalistas, mas o capital; quantos capitalistas ficam?… Vê?…