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O primeiro que teve oportunidade de manifestar esta curiosidade pública foi o empregado da recepção do hotel quando a Tertuliano Máximo Afonso pediu um documento que o identificasse, e há que dar graças ao céu por não lhe ter perguntado primeiro como se chamava, porque bem poderia ter sucedido que Tertuliano Máximo Afonso tivesse deixado sair, pela força do hábito, o nome que durante trinta e oito anos havia sido o seu e agora é pertença de um corpo destroçado que numa câmara frigorífica qualquer aguarda a autópsia a que os mortos de acidente por via de regra não escapam. O cartão de identidade que apresentou tem pois o nome de António Claro, a cara da fotografia aposta nele é a mesma que o recepcionista tem na sua frente e que detidamente se poria a examinar se houvesse razão para dar-se a esse trabalho. Não a há, Tertuliano Máximo Afonso já assinou a sua ficha de hóspede, nestes casos serve um simples rabisco desde que mostre alguma semelhança com a assinatura formal, já tem a chave do quarto na mão, já disse que não traz bagagem, e para reforçar uma verosimilhança que ninguém lhe havia pedido, explicou que perdeu o avião, que deixou as malas no aeroporto, e por isso é que não fica mais que uma noite. Tertuliano Máximo Afonso mudou de nome, mas continua a ser a mesma pessoa que acompanhámos à loja dos vídeos, que sempre fala mais do que é preciso, que não sabe ser natural, o que lhe valeu foi que o empregado da recepção tem outros assuntos em que pensar, o telefone que toca, uns quantos estrangeiros que acabam de chegar ajoujados de malas e sacos de viagem. Tertuliano Máximo Afonso subiu ao quarto, pôs-se à vontade, foi à casa de banho para aliviar a bexiga, salvo ter perdido o avião, como disse ao recepcionista, parecia que não tinha outras preocupações, mas isso foi enquanto não se estendeu na cama com a intenção de descansar um pouco, imediatamente a imaginação lhe pôs diante um automóvel reduzido a um montão de sucata e dentro dele, miseramente sangrando, dois corpos destroçados. Voltaram as lágrimas, voltaram os soluços, e sabe-se lá por quanto tempo continuaria assim se de súbito a escandalizada recordação da mãe não tivesse irrompido no seu desnorteado cérebro. Sentou-se de um pulo, deitou mão ao telefone ao mesmo tempo que se ia cobrindo mentalmente de insultos, sou uma besta, um estúpido, um idiota total, um imbecil, não passo de um cretino, como foi possível não ter pensado que a polícia me iria bater à porta, que interrogaria os vizinhos para averiguar se tenho parentes, que a vizinha de cima lhe daria a morada e o número do telefone da minha mãe, como foi possível esquecer-me de uma coisa que se metia pelos olhos dentro, como foi possível. Ninguém atendia de lá. O telefone tocava, tocava, mas ninguém apareceu a perguntar, Quem fala, para que finalmente Tertuliano Máximo Afonso pudesse responder, Sou eu, estou vivo, a polícia enganou-se, depois explico. A mãe não se encontrava em casa, e este facto, insólito noutra situação, só podia significar que vinha a caminho, que tinha alugado um táxi e vinha a caminho, talvez até já tivesse chegado, e, sendo assim, foi pedir a chave à vizinha de cima e agora está chorando o seu desgosto, pobre mãe, que bem me tinha avisado. Tertuliano Máximo Afonso marcou o número do seu telefone, e uma vez mais não lhe responderam. Esforçou-se por pensar serenamente, por aclarar a turvação do espírito, ainda que a polícia tivesse sido exemplarmente diligente precisou de tempo para realizar e concluir as investigações, há que recordar que esta cidade é um imenso formigueiro de cinco milhões de habitantes irrequietos, que são muitos os acidentes e os acidentados muitos mais, que é necessário identificá-los, ir depois à procura das famílias, tarefa nem sempre fácil porque há pessoas tão descuidadas que vão para a estrada sem ao menos um papel no bolso que previna, Se me suceder algum desastre, chamem fulano ou fulana de tal. Felizmente Tertuliano Máximo Afonso não é dessas pessoas, pelos vistos também Maria da Paz não o era, na agenda de cada um deles, na folhinha reservada aos dados pessoais, estava tudo quanto era necessário a uma identificação perfeita, pelo menos para as primeiras necessidades, que quase sempre acabam por ser as últimas. Ninguém que não fosse um fora-da-lei andaria a passear-se por aí com documentos falsos ou subtraídos a outra pessoa, donde é legítimo concluir, reportando-nos ao caso presente, que aquilo que pareceu à polícia o era de facto, tanto mais que, Dão havendo quaisquer motivos para duvidar da identidade de uma das vítimas, não se vê por que diabo de razão teria de havê-los em relação à outra. Tertuliano Máximo Afonso ligou novamente, e novamente não teve resposta. Já não pensa em Maria da Paz, agora o que quer saber é onde está Carolina Máximo, os táxis de hoje são máquinas potentíssimas, não as chocolateiras de antigamente, e, numa situação dramática como esta, nem seria preciso aliciar o condutor com a promessa de uma gratificação para que ele pisasse o acelerador, em menos de quatro horas deveria aqui estar, e, sendo este dia sábado e tempo de férias, com o trânsito nas ruas reduzido ao mínimo, ela já tinha mais do que obrigação de estar em casa para tranquilizar o desassossego deste filho. Tornou a ligar e, desta vez, sem que o esperasse, o gravador entrou em funcionamento, Fala Tertuliano Máximo Afonso, deixe o seu recado por favor, o choque foi fortíssimo, de tão perturbado que tem estado não se deu conta de que o mecanismo de gravação não havia entrado em acção antes, e agora foi como se de repente tivesse ouvido uma voz que não era sua, a voz de um morto desconhecido que amanhã vai ser necessário substituir pela de um vivo qualquer para que não impressione as pessoas sensíveis, operação de tirar-e-pôr que todos os dias é realizada milhares e milhares de vezes em todos os lugares do mundo, ainda que em tal não nos agrade pensar. Tertuliano Máximo Afonso precisou de alguns segundos para serenar e recuperar a sua própria voz, depois, trémulo, disse, Minha mãe, não é verdade o que lhe disseram, estou vivo e são, depois lhe explicarei o que se passou, repito, estou vivo e são, vou dar-lhe o nome do hotel em que me encontro hospedado, o número do quarto e o número do telefone, ligue assim que chegar aí, não chore mais, não chore mais, talvez Tertuliano Máximo tivesse dito terceira vez estas palavras, se ele próprio não tivesse rebentado em lágrimas, pela mãe, por Maria da Paz, cuja recordação aí estava outra vez, também por piedade de si mesmo. Exausto, deixou-se cair na cama, sentia-se fraco, débil como uma criança doente, lembrou-se de que não havia ali-doçado e a ideia, em vez de lhe despertar o apetite, provocou-lhe uma náusea tão violenta que teve de levantar-se e correr como pôde à casa de banho onde os sucessivos arrancos não lhe fizeram subir do estômago mais do que uma espuma amarga, Voltou ao quarto, sentou-se na cama com a cabeça entre as mãos deixando vogar o pensamento como um barquinho de cortiça que desce a corrente e de vez em quando, ao chocar com uma pedra, por um instante muda de rumo. Foi graças a este divagar meio consciente que se lembrou de algo importante que deveria ter comunicado à mãe. Ligou para casa pensando que a máquina lhe iria fazer outra vez a desfeita de não funcionar, e soltou um suspiro de alívio quando o gravador, após uns segundos de hesitação, deu sinal de vida. Usou poucas palavras para deixar o recado, disse apenas, Tome nota de que é António Claro o nome, não se esqueça, e depois, como se tivesse acabado de descobrir um elemento de peso para a definitiva elucidação das comutativas e instáveis identidades em liça, aditou a seguinte informação, O cão chama-se Tomarctus. Quando a mãe chegar já não precisará de lhe recitar os nomes do pai e dos avós, dos tios maternos e paternos, já não terá de falar do braço partido quando caiu da figueira, nem da sua primeira namorada, nem do raio que deitou abaixo a chaminé da casa quando ele tinha dez anos. Para que Carolina Afonso venha a ter a certeza absoluta de que diante de si se encontra o filho das suas entranhas não fará falta o maravilhoso instinto maternal nem as científicas provas confirmadoras do ADN, o nome de um simples cão bastará.

Passou quase uma hora antes que o telefone tocasse. Sobressaltado, Tertuliano Máximo Afonso levantou-o rapidamente, esperando ouvir a voz da mãe, mas o que lhe saiu foi o empregado da recepção, que dizia, Está aqui a senhora Carolina Claro, que lhe quer falar, É a minha mãe, balbuciou, eu desço, eu desço já. Saiu a correr, ao mesmo tempo que se ia repreendendo, Tenho de dominar-me, não devo exagerar nas mostras de carinho, quanto menos dermos nas vistas, melhor. A lentidão do elevador ajudou-o a moderar o caudal de emoções, e foi já um Tertuliano Máximo Afonso bastante aceitável aquele que apareceu no átrio do hotel e abraçou a idosa senhora, a qual, fosse por acerto do instinto ou por efeito de meditada ponderação no táxi que a trouxe aqui, retribuiu com comedimento as demonstrações de afecto filial, sem as vulgares exuberâncias passionais que se exprimem em frases do tipo Ai o meu rico filho, embora, no caso do presente drama, devesse ser Ai o meu pobre filho a mais adequada à situação. Os abraços, os choros convulsos tiveram de esperar até chegarem ao quarto, até que a porta se fechou e o filho ressuscitado pôde dizer Minha mãe, e ela não teve outras palavras senão as que conseguiam sair-lhe do coração agradecido, És tu, és tu. Esta mulher, porém, não é das que são fáceis de contentar, daquelas a quem um afago faz logo olvidar um agravo, que neste caso nem contra ela havia sido, mas contra a razão, o respeito, e também o senso comum, para que não se diga que já nos esquecemos de quem fez tudo quanto pôde para que a história dos homens duplicados não terminasse em tragédia. Carolina Máximo não empregará este termo, dirá apenas, Há duas pessoas mortas, agora conta-me desde o princípio como foi possível que isto acontecesse, e não me ocultes nada, por favor, o tempo das meias verdades chegou ao fim, e o das meias mentiras também. Tertuliano Máximo Afonso puxou uma cadeira para a mãe se sentar,. sentou-se ele próprio na borda da cama, e começou o seu relato. Desde o princípio, como lhe fora exigido. Ela não o interrompeu, somente por duas vezes se alterou a sua expressão, a primeira na altura em que António Claro dizia que ia levar Maria da Paz à casa de campo para fazer amor com ela, a segunda quando o filho explicou como e porque havia ido a casa de Helena e o que depois lá se passou. Moveu os lábios a dizer, Loucos, mas a palavra não se ouviu. A tarde havia descido, a penumbra já encobria as feições de um e do outro. Quando Tertuliano Máximo Afonso se calou, a mãe fez a pergunta inevitável, E agora, Agora, minha mãe, o Tertuliano Máximo Afonso que fui está morto, e o outro, se quiser continuar a fazer parte da vida, não terá outro remédio que ser António Claro, E por que não contar a verdade, por que não dizer o que se passou, por que não pôr todas as coisas nos seus lugares, Acabou de ouvir o que sucedeu, Sim, e depois, Pergunto-lhe, minha mãe, se realmente acha que estas quatro pessoas, as mortas e as vivas, deveriam ser atiradas à praça pública para regalo e disfrute da feroz curiosidade do mundo, e que ganharíamos com isso, os mortos não ressuscitariam e os vivos começariam a morrer nesse dia, Que fazer, então, A mãe acompanhará o enterro do falso Tertuliano Máximo Afonso e chorá-lo-á como se ele fosse o seu filho, a Helena irá também, mas ninguém poderá saber por que está ela ali, E tu, Já lhe disse, sou António Claro, quando acendermos a luz a cara que lhe aparecerá será a dele, não a minha, És o meu filho, Sim, sou o seu filho, mas não o poderei ser, por exemplo, na cidade onde nasci, estou morto para as pessoas de lá, e quando a mãe e eu nos quisermos ver terá de ser num lugar em que ninguém tenha tido conhecimento da existência de um professor de História chamado Tertuliano Máximo Afonso, E Helena, Amanhã irei pedir-lhe que me perdoe e restituir-lhe este relógio e esta aliança de casamento, E para chegar a isso tiveram de morrer duas pessoas, Que eu matei, e uma delas vítima inocente, sem nenhuma culpa. Tertuliano Máximo Afonso levantou-se e foi acender a luz. A mãe estava a chorar. Durante alguns minutos permaneceram calados, evitando olhar-se um ao outro. Depois a mãe murmurou enquanto passava o lenço húmido pelas pálpebras, A velha Cassada tinha razão, não devias ter deixado entrar o cavalo de madeira, Agora já não há remédio, Sim, agora já não há remédio, e no futuro também não o haverá, todos estaremos mortos. Ao cabo de um curto silêncio Tertuliano Máximo Afonso perguntou, A polícia falou-lhe das circunstâncias do acidente, Disseram-me que o carro saiu da faixa e foi chocar contra um camião TIR que seguia em sentido contrário, também me disseram que a morte deles deve ter sido instantânea, É estranho, Estranho, quê, Tinha a ideia de que ele seria um bom condutor, Algo terá sucedido, Podia ter derrapado, podia haver óleo na estrada, Disso não me falaram, só que o carro saiu da faixa e foi chocar com o camião. Tertuliano Máximo Afonso tomou a sentar-se na borda da cama, olhou o relógio e disse, Vou pedir à recepção que lhe reservem um quarto, jantamos e fica no hotel esta noite, Prefiro ir para casa, depois de comermos chamas um táxi, Eu levo-a, ninguém me verá, E como me vais levar tu, se já não tens carro, Estou com o que era dele. A mãe abanou a cabeça tristemente e disse, O carro dele, a mulher dele, só falta que passes a ter também a sua vida, Terei de descobrir outra melhor para mim, e agora, por favor, vamos comer qualquer coisa, tréguas à desgraça. Estendeu as mãos para a ajudar a levantar-se, depois abraçou-a e disse, Lembre-se de apagar as chamadas que deixei no gravador, todos os cuidados são poucos com os gatos que se esquecem de meter o rabo para dentro. Quando acabaram de jantar, a mãe tornou a pedir, Chama-me um táxi, Eu levo-a a casa, Não podes arriscar-te a que te vejam, além disso arrepia-me só de pensar em sentar-me nesse carro, Acompanho-a no táxi e volto, Já tenho idade para andar sozinha, não insistas. À despedida Tertuliano Máximo Afonso disse, Faça por descansar, minha mãe, que bem precisa, O mais certo é que não consigamos dormir os dois, nem eu nem tu, respondeu ela.

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