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Pronto, disse em voz alta, que não se diga de mim que não fiz o que devia. Sentiu-se de repente tranquilo como há muito tempo não acontecia. O seu tempo de descanso começara, podia entrar na casa de banho com a cabeça desanuviada, fazer a barba, assear-se sem pressas, vestir-se com esmero, de um modo geral os domingos são dias tristonhos, aborrecidos, mas há alguns que foi uma sorte terem vindo ao mundo. Era demasiado tarde para tomar o pequeno-almoço, ainda cedo para almoçar, havia que entreter o tempo de alguma maneira, podia descer a comprar o jornal e voltar, podia passar uma vista de olhos pela lição que terá de dar amanhã, podia sentar-se a ler umas quantas páginas mais da História das Civilizações Mesopotâmicas, podia, podia, nesse momento acendeu-se-lhe uma luz num escaninho da memória, a lembrança de um dos sonhos desta noite, aquele em que um homem ia transportando uma pedra às costas e dizendo Sou amorreu, teria graça que a tal pedra fosse o famoso código de Hamurabi e não um calhau qualquer levantado do chão, o lógico, realmente, é que os sonhos históricos os devam sonhar os historiadores, que para isso estudaram. Que a História das Civilizações Mesopotâmicas o levasse à legislação do rei Hamurabi não tem nada que surpreender-nos, foi um trânsito tão natural como abrir a porta para o quarto ao lado, mas que a pedra às costas do amorreu lhe tivesse feito recordar que não telefonava à mãe há quase uma semana, isto nem o mais pintado sonflogo seria capaz de nos explicar, excluída sem dó nem piedade, por abusiva e mal-intencionada, a fácil interpretação de que Tertuliano Máximo Afonso, às ocultas, sem se atrever a confessá-lo, considera a progenitora como uma pesada carga. Pobre mulher, lá tão longe, sem notícias, e tão discreta e respeitadora da vida do filho, imagine-se, um professor de liceu, que só em casos extremos ousaria telefonar, interrompendo um labor que de certo modo se encontra para além da sua compreensão, e não e que ela não tenha as suas letras, não é que ela própria não tenha estudado História nos seus tempos de menina, o que sempre lhe fez confusão é que a História possa ser ensinada. Quando se sentava nos bancos da escola e ouvia falar dos sucessos do passado à professora, parecia-lhe que tudo aquilo não era mais que imaginações, e que, se a mestra as tinha, também ela as poderia ter, tal como às vezes se descobria a imaginar a sua própria vida. Que os acontecimentos lhe aparecessem depois ordenados no livro de História, em nada modificava a sua ideia, o que o compêndio fazia não era mais que recolher as livres fantasias de quem o havia escrito, e portanto não deveria existir uma diferença assim tão grande entre essas fantasias e as que se podiam ler num romance qualquer. A mãe de Tertuliano Máximo Afonso, cujo nome, Carolina, de apelido Máximo, aqui finalmente aparece, é uma assídua e fervorosa leitora de romances. Como tal, sabe tudo de telefones que às vezes tocam sem ser esperados e de outros que tocam às vezes quando desesperadamente se esperava que tocassem. Não foi este o caso de agora, a mãe de Tertuliano Máximo Afonso só tem andado a perguntar-se, Quando será que o meu filho me telefona, e eis que de repente tem a sua voz juntinha ao ouvido, Bons dias, minha senhora mãe, como tem passado, Bem, bem, na forma do costume, e tu, Eu também, como sempre, Tens tido muito trabalho na escola, O normal, os exercícios, as chamadas, uma reunião ou outra de professores, E essas aulas, quando é que acabam este ano, Daqui por duas semanas, depois ainda terei uma semana de exames, Quer dizer que antes de um mês estarás aqui comigo, Irei vê-la, claro, mas não poderei ficar mais que três ou quatro dias, Porquê, É que tenho ainda umas coisas para arrumar aqui, umas voltas a dar, Que coisas são essas, que voltas, a escola fecha para férias e as férias, que eu saiba, fizeram-se para descanso das pessoas, Esteja tranquila, hei-de descansar, mas há uns assuntos que devo resolver primeiro, E são sérios, esses teus assuntos, Acho que sim, Não percebo, se são sérios, são sérios mesmo, não é uma questão de achar ou não achar que o sejam, Foi uma maneira de dizer, Tem algo que ver com a tua amiga, a Maria da Paz, Até certo ponto, Pareces uma personagem de um livro que tenho andado a ler, uma mulher que quando lhe perguntam responde sempre com outra pergunta, Repare que as perguntas as tem feito a mãe, a minha, e única, foi para saber como tem passado, É porque não me falas claro e direito, dizes acho que sim, dizes até certo ponto, não estava habituada a que fizesses mistérios comigo, Não se zangue, Não me zango, mas tens de compreender que estranhe que, entrando tu de férias, não venhas logo para aqui, não me lembro de que isso tenha alguma vez sucedido, Depois lhe contarei tudo, Vais fazer alguma viagem, Outra pergunta, Vais, ou não vais, Se fosse dizia-lho, O que eu não percebo é por que disseste que a Maria da Paz tinha que ver com esses assuntos que te obrigam a ficar, Não é tanto assim, devo ter exagerado, Estás a pensar em casar-te outra vez, Que ideia, mãe, Pois talvez devesses, As pessoas agora casam-se pouco, com certeza já deduziu isso dos romances que tem lido, Não sou estúpida e sei muito bem em que mundo vivo, o que penso é que não tens o direito de andar a empatar a rapariga, Nunca lhe prometi casamento nem lhe propus vivermos juntos, Para ela, uma relação que dura há seis meses é como uma promessa, não conheces as mulheres, Não conheço as do seu tempo, E conheces pouco as do teu, É possível, realmente a minha experiência de mulheres não é grande, casei-me uma vez e divorciei-me, o resto conta pouco, Há a Maria da Paz, Também não conta muito, Não te dás conta de que estás a ser cruel, Cruel, que solene palavra, Já sei que soa a romance barato, mas as formas da crueldade são muitíssimas, algumas até se disfarçam de indiferença ou de indolência, se queres dou-te um exemplo, não decidir a tempo pode tomar-se em arma consciente de agressão mental contra os outros, Sabia que tinha dotes de psicóloga, mas não que chegassem a tanto, De psicologia não sei nada, nunca estudei uma linha, mas de pessoas creio saber alguma coisa, Falaremos quando aí for, Não me faças esperar muito, a partir de agora não terei um instante de sossego, Tranquilize-se, por favor, de uma maneira ou outra neste mundo tudo acaba por se resolver, Às vezes da maneira pior, Não há-de ser o caso, Oxalá, Um beijo, minha mãe, Outro, meu filho, tem cuidado contigo, Terei. A inquietação da mãe fez sumir-se a impressão de bem-estar que havia dado uma vivacidade nova ao espírito de Tertuliano Máximo Afonso depois da chamada feita ao Santa-Clara que não estava em casa.

Falar de assuntos sérios que teria de tratar após terminarem as aulas fora um erro imperdoável. É certo que a conversa derivara depois para a sua relação com Maria da Paz, e até, num momento determinado, parecera ir fixar-se aí, mas aquela frase da mãe, Às vezes da maneira pior, quando, para a sossegar, ele tinha dito que neste mundo tudo se resolve, soavam-lhe agora a vaticínio de desastres, a anúncio de fatalidades, como se, em lugar da idosa senhora que se chamava Carolina Máximo e era sua mãe, lhe tivesse saído do outro lado do fio uma sibila ou uma cassandra a dizer-lhe, por outras palavras, Ainda estás a tempo de parar. Por um momento pensou em meter-se no carro, fazer a viagem de cinco horas que o levaria à pequena cidade onde a mãe vivia, contar-lhe tudo e depois regressar com a alma lavada de miasmas enfermiços ao seu trabalho de professor de História pouco amante de cinema, decidido a virar esta página confusa da sua vida e até mesmo, quem sabe, disposto a considerar muito seriamente a possibilidade de se casar com Maria da Paz. Les jeux sont faits, rien ne va plus, disse em voz alta Tertuliano Máximo Afonso, que em toda a sua vida nunca entrou num casino, mas tem no seu activo de leitor alguns romances famosos de la belle époque. Guardou a carta para a produtora de filmes numa das algibeiras do casaco e saiu. Esquecer-se-á de a meter no marco postal, almoçará por aí, logo regressará a casa para tragar até ao fim as fezes desta tarde de domingo.

A primeira tarefa de Tertuliano Máximo Afonso no dia seguinte foi fazer dois pacotes das cassetes que iria devolver à loja. Depois juntou as restantes, atou-as com um cordel e foi guardá-las num armário do quarto, fechadas à chave. Metodicamente, rasgou os papéis em que tinha apontado os nomes dos actores, fez o mesmo aos rascunhos da carta esquecida na algibeira do casaco e que ainda terá de esperar uns minutos antes de dar o seu primeiro passo no caminho que a levará ao destinatário, e, por fim, como se tivesse algum motivo forte para apagar as suas impressões digitais, limpou com um pano humedecido todos os móveis do escritório em que havia tocado nestes dias. Apagou também as que Maria da Paz tinha deixado, mas nisso não pensou. Os sinais de passagem que queria fazer desaparecer não eram os seus nem os dela, eram, sim, os da presença que o arrancara violentamente ao sono na primeira noite. Não valia a pena observarem-lhe que semelhante presença só no seu cérebro tinha existido, que certamente a havia fabricado uma angústia gerada no seu espírito por um sonho de que se tinha esquecido, não valia a pena sugerirem-lhe que teria podido ser, talvez, e nada mais, a consequência sobrenatural de uma má digestão do guisado de carne, não valia a pena demonstrarem-lhe, finalmente, com as razões da razão, que, mesmo estando dispostos a aceitar a hipótese de uma certa capacidade de materialização dos produtos da mente no mundo exterior, o que de todo em todo não podemos admitir é que a inapreensível e invisível presença da imagem cinematográfica do recepcionista de hotel tivesse deixado espalhados por toda a casa vestígios de sudação dos dedos. Tanto quanto até agora se sabe, o ectoplasma não transpira. Terminado o trabalho, Tertuliano Máximo Afonso vestiu-se, pegou na sua pasta de professor e nos dois embrulhos, e saiu. Encontrou na escada a vizinha do andar de cima que lhe perguntou se precisava de ajuda, e ele disse que não, minha senhora, muito obrigado, logo, por sua vez, interessou-se ele por saber como tinha decorrido para ela o fim-de-semana, e ela respondeu que assim-assim, na forma do costume, e que o tinha ouvido a trabalhar na máquina de escrever, e ele disse que mais tarde ou mais cedo teria de resolver-se a comprar um computador, que esses, ao menos, são silenciosos, e ela disse que o ruído da máquina não a incomodava nada, pelo contrário, que até lhe fazia companhia. Como hoje seria dia de limpeza, ela perguntou-lhe se não voltava a casa antes do almoço e ele respondeu que não, que almoçaria na escola e só regressaria pela tarde. Despediram-se até logo, e Tertuliano Máximo Afonso, consciente de que a vizinha ficara a observar comiserante a sua falta de jeito para carregar com os dois embrulhos e a pasta, desceu a escada dando atenção aonde punha os pés para não tombar de cambulhada e morrer de vergonha. O carro estava do lado oposto ao marco postal. Foi guardar os embrulhos no porta-bagagem e voltou para trás, ao mesmo tempo que ia tirando a carta da algibeira. Um garoto que passou a correr deu-lhe sem querer um encontrão e a carta soltou-se-lhe dos dedos e caiu no passeio. O rapaz parou uns passos adiante e pediu desculpa, mas, talvez por temor a uma repreensão ou a um castigo, não a veio levantar e devolver, como era sua obrigação. Tertuliano Máximo Afonso fez um aceno complacente com a mão, o gesto de quem decidira aceitar as desculpas e perdoar o resto, e baixou-se para recolher a carta, Pensou que poderia fazer uma aposta consigo mesmo, deixá-la onde estava e entregar às mãos do acaso os destinos dos dois, o dela e o de si próprio. Podia suceder que a próxima pessoa a passar por ali apanhasse a carta perdida, visse que tinha o selo posto e, como bom cidadão, a fosse meter escrupulosamente no marco postal, podia suceder que a abrisse para ver o que teria dentro e a atirasse fora depois de a ter lido, podia suceder que não lhe desse atenção e indiferente a pisasse, que durante o resto do dia a calcassem muitas pessoas mais, cada vez mais suja e amassada, até que alguém decidisse de uma vez empurrá-la com a ponta do sapato para a valeta, onde o varredor de lixo a viria encontrar. A aposta não foi feita, a carta foi levantada e levada ao marco postal, a roda do destino pôs-se finalmente em movimento. Agora Tertuliano Máximo Afonso irá à loja dos vídeos, conferirá com o empregado as cassetes que traz nos embrulhos e, por exclusão de partes, as que havia deixado em casa, pagará o que deve e possivelmente dirá consigo mesmo que nunca mais ali entrará. Afinal, para alívio seu, o empregado mesureiro não estava, quem o atendeu foi a rapariga nova e inexperiente, por isso as operações demoraram um tanto mais, embora a facilidade de cálculo mental do cliente de alguma coisa novamente tivesse servido quando chegou a altura das contas. A empregada perguntou-lhe se queria alugar ou comprar alguns vídeos mais, ele respondeu que não, que tinha chegado ao fim do seu trabalho, e isto disse-o sem se lembrar que a rapariga ainda não estava na loja quando ele havia feito o seu famoso discurso sobre as marcas ideológicas presentes em todo e qualquer relato fílmico, também, naturalmente, nas grandes obras da sétima arte, mas sobretudo nas produções de consumo corrente, séries bê ou cê, aquelas de que em geral se faz nulo caso, mas que são as mais eficazes porque apanham desacautelado o espectador. Parecia-lhe que a loja era mais pequena do que quando tinha aqui entrado pela primeira vez, ainda não há uma semana, realmente era inacreditável como em tão pouco tempo a sua vida se transformara, neste momento sentia-se como se flutuasse numa espécie de limbo, num corredor de passagem entre o céu e o inferno que o fazia perguntar-se, com certo sentimento de assombro, de onde viera e para onde iria agora, porquanto, a avaliar pelas ideias que sobre o assunto correm, não pode ser a mesma coisa transportar-se uma alma do inferno ao céu ou ser empurrada do céu para o inferno. Já ia conduzindo o automóvel na direcção da escola quando estas reflexões escatológícas foram substituídas por uma analogia doutro tipo, colhida esta na história natural, secção de entomologia, a qual o fez olhar-se a si mesmo como uma crisálida em estado de recolhimento profundo e em secreto processo de transformação. Apesar do humor sombrio que o acompanhava desde que se levantara da cama, sorriu da comparação ao pensar que, neste caso, tendo entrado no casulo como lagarta, dele sairia como borboleta. Eu, borboleta, murmurou, é só o que me falta ver. Arrumou o carro não muito longe da escola, consultou o relógio, ainda teria tempo para beber um café e passar os olhos pelos jornais, se os havia livres. Sabia que tinha descuidado a preparação da lição, mas a experiência dos anos resolveria a falta, outras vezes tivera de improvisar e ninguém percebera a diferença. O que nunca faria seria entrar na aula e disparar à mão salva contra os inocentes infantes, Hoje há chamadas. Seria um acto desleal, a prepotência de quem, por ter a faca na mão, faz dela o uso que muito bem lhe apetece e varia a espessura das fatias do queijo conforme os caprichos da ocasião e as preferências estabelecidas. Quando entrou na sala dos professores, viu que ainda havia jornais disponíveis no escaparate, mas para lá chegar teria de passar por uma mesa onde, diante de chávenas de café e copos de água, três colegas conversavam. Mal pareceria seguir adiante, tanto mais que um deles era o seu amigo professor de Matemática, a quem, em compreensão e paciência, tanto estava a dever. Os outros eram uma idosa professora de Literatura e um jovem professor de Ciências Naturais com quem nunca havia criado relações de proximidade afectiva. Deu os bons-dias, perguntou se podia fazer-lhes companhia e, sem esperar resposta, puxou uma cadeira e sentou-se. A uma pessoa não informada dos costumes do lugar poderia parecer um tal procedimento bastante convizinho da má educação, mas os protocolos de relação na sala de professores assim se tinham organizado, de modo por assim dizer natural, não haviam sido passados a escrito, mas assentavam em sólidos alicerces de consenso, uma vez que não entrando na cabeça de ninguém responder negativamente à pergunta, melhor era saltar logo o coro, de concordâncias, umas sinceras, outras não tanto, e dar a coisa por feita. O único ponto delicado, esse, sim, capaz de gerar tensão entre quem já estava e quem acabou de chegar, residia na possibilidade de que o assunto em debate fosse de natureza confidencial, mas isso mesmo havia sido solucionado pelo recurso tácito a outra pergunta, esta retórica por excelência, Interrompo, para a qual só era socialmente admissível uma resposta, De modo nenhum, junte-se a nós. Dizer ao recém-chegado, por exemplo, ainda que com as melhores maneiras, Interrompe, sim senhor, vá sentar-se noutro sítio, causaria uma comoção tal que a rede intra-relacional do grupo seria gravemente abalada e posta em causa. Tertuliano Máximo Afonso voltou com o café que tinha ido buscar, instalou-se e perguntou, Que novidades há, Refere-se às de fora ou às de dentro, perguntou por seu turno o professor de Matemática, As de dentro é cedo para sabê-las, referia-me às de fora, ainda não li os jornais, As guerras que havia ontem continuam hoje, disse a professora de Literatura, Sem esquecer a probabilidade altíssima ou mesmo a certeza de que outra está pronta para começar, acrescentou o professor de Ciências Naturais como se estivessem combinados, E você, como foi o seu fim-de-semana, quis saber o professor de Matemática, Tranquilo, em paz, passei quase todo o tempo a ler um livro de que creio já lhe ter falado, um sobre as civilizações mesopotâmicas, o capítulo que trata dos amorreus é interessantíssimo, Pois eu fui ao cinema com a minha mulher, Ah, fez Tertuliano Máximo Afonso desviando os olhos, Aqui o nosso colega é pouco apreciador de cinema, aparteou o de Matemática para os outros, Nunca afirmei redondamente que não gosto, o que disse e repito é que o cinema não faz parte dos meus afectos culturais, prefiro os livros, Meu caro, não vale a pena enxofrar-se, o assunto não tem importância, sabe bem que foi com a melhor das intenções que lhe sugeri que visse aquele filme, Que significa exactamente enxofrar-se, perguntou a professora de Literatura, tanto por curiosidade como para deitar água na fervura, Enxofrar-se, respondeu o de Matemática, significa irritar-se, zangar-se, ou, com mais precisão, arrufar-se, E por que é arrufar-se, em sua opinião, mais preciso que zangar-se ou irritar-se, perguntou o professor de Ciências Naturais, Não será mais que uma interpretação pessoal que tem que ver com recordações da infância, quando a minha mãe me repreendia ou castigava por qualquer tropelia eu fechava a cara e recusava-me a falar, mantinha um silêncio total que podia durar muitas horas, então ela dizia que eu estava arrufado, Ou enxofrado, Exactamente, Em minha casa, quando eu andava por essas idades, disse a professora de Literatura, a metáfora para os amuos infantis era diferente, Diferente, em quê, Digamos que asinina, Explique-nos lá isso, Amarrar o burro, era o que se dizia, e escusam de ir procurar a expressão nos dicionários porque não a encontram, suponho que fosse exclusiva da família. Todos riram, com excepção de Tertuliano Máximo Afonso, que deixou aparecer um sorriso meio contrariado para corrigir, Exclusiva não creio que o fosse assim tanto, porque em minha casa também se usava. Houve novos risos, a paz estava feita. A professora de Literatura e o professor de Ciências Naturais levantaram-se, disseram logo nos vemos como despedida, provavelmente seriam as suas aulas mais longe, talvez no andar de cima, estes que ficaram sentados dispõem ainda de alguns minutos para o que faltar dizer, De uma pessoa que declarou ter estado durante dois dias entregue à serenidade de uma leitura histórica, observou o colega de Matemática, esperaria eu tudo, menos essa cara atormentada, É impressão sua, não tenho nada que me atormente, devo é ter cara de quem dormiu pouco, Você poderá dar-me as razões que quiser, mas a verdade é que desde que viu aquele filme não parece o mesmo, Que quer dizer com isso de que não pareço o mesmo, perguntou Tertuliano Máximo Afonso num tom inesperado de alarme, Nada senão o que disse, que o noto mudado, Sou a mesma pessoa, Não duvido, É verdade que ando algo apreensivo por causa de uns assuntos de ordem sentimental que ultimamente se me complicaram, são coisas que podem suceder a qualquer, mas isso não significa que me tenha tomado em outra pessoa, Nem eu o disse, não tenho nenhuma dúvida de que continua a chamar-se Tertuliano Máximo Afonso e é professor de História nesta escola, Então não percebo por que é que insiste em dizer que não pareço o mesmo, Desde que viu o filme, Não falemos do filme, já conhece a minha opinião sobre ele, De acordo, Sou a mesma pessoa, Claro que sim, Deveria lembrar-se que tenho andado com uma depressão, Ou marasmo, que era o outro nome que você lhe dava, Exactamente, E que isso merece respeito, Respeito tem-no todo de mim, bem o sabe, mas não era dele que falávamos, Sou a mesma pessoa, Agora é você quem insiste, É certo, ainda há poucos dias o disse, que estou a passar por um período de forte tensão psicológica, e portanto é natural que ela me venha à cara e se note nos meus modos, Claro, Mas isso não quer dizer que tenha mudado moral e fisicamente ao ponto de me parecer a outra pessoa, Eu limitei-me a dizer que você não parecia o mesmo, não que se parecesse a outra pessoa, A diferença não é grande, A nossa colega de Literatura diria que é, pelo contrário, enorme, e ela entende dessas coisas, creio que em subtilezas e matizes a literatura é quase como a matemática, Já eu, pobre de mim, pertenço à área da História, onde os matizes e as subtilezas não existem, Existiriam se a História pudesse ser, digamos assim, o retrato da vida, Estou a estranhá-lo, não é próprio de si ser tão convencionalmente retórico, Tem toda a razão, em tal caso a História não seria a vida, apenas um dos possíveis retratos dela, parecidos, sim, mas nunca iguais. Tertuliano Máximo Afonso desviou novamente os olhos, logo, com um difícil esforço de vontade, voltou a fixá-los no colega, como para averiguar o que haveria escondido por trás da serenidade aparente do seu rosto. O de Matemática sustentou o olhar sem que parecesse dar-lhe especial atenção, depois, com um sorriso em que havia tanto de ironia simpática como de franca benevolência, disse, Talvez um dia me disponha a ver outra vez a tal comédia, pode ser que consiga descobrir o que o faz andar transtornado, supondo que é lá que se encontre a origem do mal. Tertuliano Máximo Afonso estremeceu da cabeça aos pés, mas, no meio da confusão, no meio do pânico, logrou dar uma resposta plausível, Não se canse, o que me traz transtornado, para usar a sua palavra, é uma ligação de que não sei como sair, se alguma vez, na sua vida, se encontrou em situação semelhante, sabe o que se sente, e agora tenho de ir dar a aula, já estou atrasado, Se não vê inconveniente, e ainda que na história do sítio haja pelo menos um perigoso caso antecedente, acompanho-o até à esquina do corredor, disse o de Matemática, ficando porém solenemente prometido que não repetirei aquele imprudente gesto de lhe pôr a mão no ombro, Assim são as coisas, hoje até podia suceder que não me importasse, Mas eu é que não quero correr riscos, você tem todo o aspecto de estar com as pilhas carregadas até à rolha. Ambos riram, sem qualquer reserva o professor de Matemática, esforçadamente Tertuliano Máximo Afonso, em cujos ouvidos ainda ressoavam as palavras que o haviam posto em pânico, a pior das ameaças que nesta altura alguém lhe poderia fazer. Separaram-se na esquina do corredor e foi cada qual ao seu destino. O aparecimento do professor de História fez perder aos alunos a fagueira ilusão que o atraso já tinha feito nascer, a de que hoje não houvesse aula. Mesmo antes de se sentar, Tertuliano Máximo Afonso anunciou que daí a três dias, portanto na próxima quinta-feira, teriam um novo e último trabalho escrito, Ficam informados de que se trata de um exercício decisivo para a definição final das notas, disse, uma vez que não tenciono proceder a chamadas orais nas duas semanas que faltam para o fim do ano lectivo, além disso, o tempo desta aula e das duas seguintes será exclusivamente dedicado a uma repassagem das matérias dadas, de maneira que possam apresentar-se com ideias frescas no dia do exercício. O exórdio foi bem acolhido pela parte mais imparcial da turma, era patente, a Deus graças, que Tertuliano não tencionava fazer mais sangue que aquele que não pudesse evitar. Daí para diante toda a atenção dos alunos irá ser posta na ênfase com que o professor for tratando cada uma das matérias do curso, porquanto, se a lógica dos pesos e medidas é realmente coisa humana e a sorte a favor um dos seus factores variáveis, tais mudanças de intensidade comunicativa poderiam estar a prenunciar, sem que ele se apercebesse da inconsciente revelação, a escolha dos temas de que o exercício constará. Se é bastamente conhecido que nenhuns seres humanos, incluindo aqueles que já atingiram as idades a que chamamos de senectude, podem subsistir sem ilusões, essa estranha enfermidade psíquica indispensável a uma vida normal, que não diríamos então destas raparigas e destes rapazes que, depois de terem perdido a ilusão de que hoje não haveria aula, se empenham agora em alimentar uma outra ilusão muito mais problemática, a de que o exercício de quinta-feira possa ser para cada um, e portanto para todos, a dourada ponte por onde triunfalmente irão transitar para o ano seguinte. A aula já estava a ponto de acabar quando um empregado bateu à porta e entrou para dizer ao senhor professor Tertuliano Máximo Afonso que o senhor director lhe rogava a especial gentileza de passar pelo seu gabinete logo que terminasse. A exposição que estava a ser desenvolvida, sobre um tratado qualquer, foi despachada em menos de dois minutos, e tão por cima da rama que Tertuliano Máximo Afonso achou por bem dizer, Não se preocupem muito com isto porque não irá sair no exercício. Os alunos trocaram olhares de um entendimento cúmplice, dos quais facilmente se subentendia que as suas ideias sobre as valorações da ênfase tinham acabado de ser confirmadas num caso em que, mais que o significado das palavras, contara o tom despiciendo com que tinham sido pronunciadas. Pouquíssimas vezes uma aula chegou ao fim num tal ambiente de concórdia.

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