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O sono fechou a porta. Tertuliano Máximo Afonso dorme.

Às onze horas da manhã Tertuliano Máximo Afonso já tinha visto três filmes, embora nenhum deles do princípio ao fim. Levantara-se muito cedo, limitara o pequeno-almoço a duas bolachas e uma chávena de café requentado, e, sem perder tempo a barbear-se, saltando as abluções que não fossem estritamente indispensáveis, de pijama e roupão como alguém que não espera visitas, lançou-se à empreitada do dia. Os dois primeiros filmes passaram debalde, mas o terceiro, cujo título era O Paralelo do Terror, trouxe à cena do crime um jovial fotógrafo da polícia que mascava chiclete e repetia, com a voz de Tertuliano Máximo Afonso, que tanto na morte como na vida tudo é questão de ângulo. No final a lista voltou a ser actualizada, foi riscado um nome, marcadas novas cruzes. Havia cinco actores assinalados cinco vezes, tantas quantos os filmes em que o sósia do professor de História tinha participado, e os seus nomes, por imparcial ordem alfabética, eram Adriano Maia, Carlos Martinho, Daniel Santa-Clara, Luís Augusto Ventura e Pedro Félix. Até este momento Tertuliano Máximo Afonso tinha andado perdido no mare magnum dos mais de cinco milhões de habitantes da cidade, mas a partir de agora só terá de se preocupar com menos de meia dúzia, e até com menos de menos de meia dúzia se um ou mais daqueles nomes vierem a ser eliminados por faltarem à chamada, É obra, murmurou, mas logo a seguir saltou-lhe aos olhos a evidência de que este outro trabalho de Hércules afinal não o havia sido tanto, uma vez que pelo menos dois milhões e quinhentas mil pessoas pertenciam ao sexo feminino e, portanto, estavam fora do campo da pesquisa. Não deverá surpreender-nos o esquecimento de Tertuliano Máximo Afonso, porquanto, em cálculos que abarquem grandes números, como no presente caso, a tendência a não contar com as mulheres é irresistível. Apesar da redução sofrida na estatística, Tertuliano Máximo Afonso foi à cozinha festejar com outro café os prometedores resultados. A campainha da porta tocou ao segundo gole, a chávena ficou parada no ar, a meio caminho da descida para o tampo da mesa, Quem será, perguntou, ao mesmo tempo que ia pousando suavemente a chávena. Poderia ser a prestável vizinha do andar de cima a querer saber se tinha encontrado tudo a seu gosto, poderia ser um desses jovens que fazem publicidade de enciclopédias em que se explicam os costumes do tamboril, poderia ser o colega das Matemáticas, não, este não era, nunca haviam sido visitas, Quem será, repetiu. Acabou de beber o café rapidamente e foi ver quem chamava. Atravessando a sala, lançou um olhar inquieto às caixas de vídeo espalhadas, à fila impassível das que, alinhadas no chão, ao longo da estante, esperavam a sua vez, a vizinha de cima, supondo que era ela, não iria gostar nada de ver neste estado deplorável o que ainda ontem lhe tinha dado tanto trabalho a arrumar. Não tem importância, ela não tem que entrar, pensou, e abriu a porta. Não era a vizinha de cima quem estava na sua frente, não era a jovem vendedora de enciclopédias a comunicar-lhe que tinha ao seu alcance, finalmente, o enorme privilégio de conhecer os costumes do tamboril, quem estava ali era uma mulher que até agora ainda não nos tinha aparecido mas de quem já sabíamos o nome, chama-se Maria da Paz, empregada num banco. Ah, és tu, exclamou Tertuliano Máximo Afonso, e logo, tentando disfarçar a perturbação, o desconcerto, Viva, que grande surpresa. Devia dizer-lhe que entrasse, Passa, passa, agora mesmo estava a beber um café, ou então, Estupendo que tenhas vindo, põe-te à vontade enquanto eu faço a barba e tomo um banho, mas era a custo que se afastava para o lado e lhe dava passagem, ah, se lhe pudesse dizer, Esperas aqui enquanto eu vou esconder uns vídeos que não quero que vejas, ah, se lhe pudesse dizer, Desculpa, vieste em má altura, neste momento não te posso dar atenção, volta amanhã, ah, se alguma coisa ainda lhe pudesse dizer, mas agora era demasiado tarde, tivesse-O pensado antes, a culpa era toda dele, o homem prudente deverá estar constantemente de pé atrás, de sobreaviso, deverá prever todas as eventualidades; sobretudo não esquecer que o procedimento mais correcto é em geral o mais simples, por exemplo, não ir ingenuamente abrir a porta só porque a campainha tocou, a precipitação dá sempre origem a complicações, é dos livros. Maria da Paz entrou com o à-vontade de quem conhece os cantos à casa, perguntou, Como tens passado, e logo, Ouvi o teu recado e penso como tu, precisamos de conversar, espero não ter vindo em má ocasião, Que ideia, disse Tertuliano Máximo Afonso, peço é que me desculpes por te receber desta maneira, despenteado, com a barba crescida e o aspecto de quem acabou de sair da cama, Vi-te outras vezes assim e nunca achaste que fosse preciso pedir desculpa, O caso, hoje, é diferente, Diferente, em quê, Sabes bem o que quero dizer, nunca vim receber-te à porta neste arranjo, de pijama e roupão, Foi uma novidade, quando já há tão poucas entre nós. A entrada para a sala estava a três passos, a estupefacção não tardaria a manifestar-se, Que demónio é isto, que fazes com todos estes vídeos, mas Maria da Paz ainda se deteve para perguntar, Não me dás um beijo, Claro, foi a infeliz e embaraçada resposta de Tertuliano Máximo Afonso, ao mesmo tempo que adiantava os lábios para a beijar na face. O masculino recato, se o era, resultou inútil, a boca de Maria da Paz tinha ido ao encontro da sua, e agora sugava-a, espremia-a, devorava-a, ao mesmo tempo que o corpo dela se colava de alto a baixo ao dele, como se não houvesse roupas a separá-los. Foi Maria da Paz quem por fim se despegou para murmurar, ofegando, uma frase que não chegou a concluir, Mesmo que me arrependa do que acabei de fazer, mesmo que me envergonhe de o ter feito, Não digas tolices, contemporizou Tertuliano Máximo Afonso a tentar ganhar tempo, que ideias, arrependimento, vergonha, era o que nos faltava, envergonhar-se, arrepender-se uma pessoa de expressar o que sente, Sabes muito bem a que me refiro, não faças de conta que não compreendes, Entraste, beijámo-nos, foi tudo do mais normal, do mais natural, Não nos beijámos, beijei-te eu, Mas eu também te beijei a ti, Sim, não tiveste outro remédio, Estás a exagerar como de costume, a dramatizar, Tens razão, exagero, dramatizo, exagerei vindo a tua casa, dramatizei ao abraçar-me a um homem que deixou de gostar de mim, deveria era ir-me daqui neste mesmo instante, arrependida, sim, envergonhada, sim, apesar da caridade de dizeres que o caso não é para tanto. A possibilidade de que ela se fosse embora, ainda que obviamente remota, projectou um raio de esperançosa luz nos sinuosos desvãos da mente de Tertuliano Máximo Afonso, mas as palavras que lhe saíram da boca, alguém diria que escapadas à sua vontade, exprimiram um sentimento diferente, Realmente, não sei aonde foste buscar essa peregrina ideia de que não gosto de ti, Explicaste-te com bastante clareza a última vez que estivemos juntos, Nunca disse que não gostava de ti, nunca disse que não gosto de ti, Em questões de coração, que conheces tão pouco, até o mais obtuso entendedor percebe a metade que não chegou a ser dita. Imaginar que se escaparam à vontade de Tertuliano Máximo Afonso as palavras agora em análise, seria esquecer que o novelo do espírito humano tem muitas e variadas pontas, e que a função de algumas das suas linhas, parecendo que conduzem o interlocutor ao conhecimento do que está dentro, é espalhar orientações falsas, insinuar desvios que irão terminar em becos sem saída, distrair da matéria fundamental, ou, como no caso que nos ocupa, suavizar, antecipando-o, o choque que se aproxima. Ao afirmar que nunca tinha dito que não gostava de Maria da Paz, dando portanto a entender que sim senhor gostava dela, o que Tertuliano Máximo Afonso pretendia, com perdão da vulgaridade das imagens, era envolvê-la em algodão-em-rama, rodeá-la de almofadas amortecedoras, atá-la a si pela emoção amorosa quando fosse impossível continuar a retê-la do lado de fora da porta que dá para a sala. Que é o que está sucedendo agora. Maria da Paz acaba de dar os três passos que faltavam, entra, não quereria pensar no mavioso canto de rouxinol que lhe roçou de leve os ouvidos, mas não consegue pensar noutra coisa, estaria mesmo disposta a reconhecer, contrita, que a sua irónica alusão a bons e maus entendedores tinha sido não só impertinente, mas também injusta, e é já com um sorriso que se volta para Tertuliano Máximo Afonso, pronta a cair-lhe nos braços e decidida a esquecer agravos e queixas. Quis, porém, o acaso, muito mais exacto teria sido dizer que foi inevitável, uma vez que conceitos tão sedutores como fado, fatalidade ou destino não teriam cabimento neste discurso, que o arco de círculo descrito pelos olhos de Maria da Paz passasse, primeiro pelo televisor ligado, logo pelas cassetes que não tinham sido devolvidas aos seus lugares no chão, finalmente pela própria fileira delas, presença inexplicável, insólita, para qualquer pessoa que, como ela, íntima destes sítios, tivesse suficiente conhecimento dos gostos e hábitos do dono da casa. Que é isto, que fazem aqui todas estas cassetes, perguntou, É material para um trabalho em que tenho andado ocupado, respondeu Tertuliano Máximo Afonso desviando a vista, Se não estou enganada, o teu trabalho, desde que te conheço, consiste em ensinar História, disse Maria da Paz, e esta coisa, olhava com curiosidade o vídeo, chamada Paralelo do Terror, não me parece que tenha muito que ver com a tua especialidade, Não há nada que me obrigue a ocupar-me só de História durante toda a vida, Claro que não, mas é natural que me tenha sentido desconcertada vendo-te rodeado de vídeos, como se de repente te tivesse dado uma paixão pelo cinema, quando antes te interessava tão pouco, Já te disse que estou ocupado com um trabalho, um estudo sociológico, por assim dizer, Não passo de uma empregada vulgar, uma bancária, mas as poucas luzes do meu entendimento chegam-me para ver que não estás a ser sincero, Que não estou a ser sincero, exclamou indignado Tertuliano Máximo Afonso, que não estou a ser sincero, era só o que me faltava ouvir, Não vale a pena irritares-te, disse o que me pareceu, Sei que não sou a perfeição em homem, mas a falta de sinceridade não é um dos meus defeitos, tinhas a obrigação de me conhecer melhor, Peço desculpa, Muito bem, ficas desculpada, não se fala mais deste assunto. Isto disse, mas teria preferido continuar nele para não ter de entrar no outro que temia. Maria da Paz acomodou-se na cadeira em frente do televisor e disse, Vim para ter uma conversa contigo, os teus vídeos não me interessam. O canto do rouxinol perdera-se nas estratosféricas regiões do tecto, era já, como em tempos passados se costumava dizer, uma saudosa lembrança, e Tertuliano Máximo Afonso, deplorável figura, enfiado no roupão, de chinelos e com a barba por fazer, portanto em flagrante situação de inferioridade, tinha consciência de que uma conversa em tom acerbo, ainda que pela própria crispação das palavras pudesse convir ao que sabemos ser seu interesse final, isto é, romper a sua relação com Maria da Paz, seria difícil de conduzir e certamente muito mais difícil de rematar. Sentou-se pois no sofá, aconchegou as abas do roupão as pernas, e principiou, conciliador, A minha ideia, De que estás a falar, interrompeu Maria da Paz, de nós, ou dos vídeos, Falaremos de nós depois, agora quero explicar-te em que espécie de estudo estou metido, Se fazes questão, seja, respondeu Maria da Paz, dominando a impaciência. Tertuliano Máximo Afonso estendeu o mais que pôde o silêncio que se seguiu, puxou da memória as palavras com que desorientara o vendedor da loja dos vídeos, ao mesmo tempo que experimentava uma estranha e contraditória impressão. Embora sabendo que vai mentir, pensa, no entanto, que essa mentira será como uma forma tergiversada da verdade, quer dizer, ainda que a explicação seja redondamente falsa, o simples facto de a repetir vai, de alguma maneira, torná-la verosímil, e cada vez mais verosímil se Tertuliano Máximo Afonso não se limitar a esta primeira prova. Enfim, sentindo-se já senhor da matéria, começou, O meu interesse por ver uns quantos filmes desta produtora, escolhida ao acaso, como poderás verificar são todos da mesma empresa cinematográfica, nasceu de uma ideia que me ocorreu há tempos, a de fazer um estudo sobre as tendências, as inclinações, os propósitos, as mensagens, tanto as explícitas como as implícitas e subliminares, ou, para ser mais preciso, os sinais ideológicos que um determinado fabricante de filmes vai disseminando, imagem a imagem, entre os consumidores deles, E como foi que te nasceu esse repentino interesse, ou, como lhe chamaste, essa ideia, que tem isso que ver com o trabalho de um professor de História, perguntou Maria da Paz, a quem não passaria pela cabeça que tinha acabado de oferecer de mão beijada a resposta que Tertuliano Máximo Afonso, na hora de aperto dialéctico em que se achava, talvez não fosse capaz de encontrar por si mesmo, É muito simples, respondeu ele com uma expressão de alívio que poderia ser facilmente confundida com a virtuosa satisfação de qualquer bom professor ao rever-se a si mesmo no acto de transmitir o seu saber à classe, É muito simples, repetiu, tal como a História que escrevemos, estudamos ou leccionamos vai fazendo penetrar em cada linha, em cada palavra, e até em cada data, o que designei por sinais ideológicos, inerentes não só à interpretação dos factos, mas igualmente à linguagem por que os expressamos, isto sem esquecer os diversos tipos e graus de intencionalidade no uso que dessa mesma linguagem fazemos, assim também o cinema, modo de contar histórias que, por via de uma sua particular eficácia, actua sobre os próprios conteúdos da História, de alguma maneira os contaminando e deformando, assim também o cinema, repito, participa, com muito maior rapidez e não menor intencionalidade, na propagação generalizada de toda uma rede desses sinais ideológicos, em regra interessadamente orientados. Fez uma pausa e, com o meio sorriso indulgente de quem se desculpa pela aridez de uma exposição que se tinha esquecido de tomar em consideração a insuficiente capacidade compreensiva do auditório, acrescentou, Espero vir a ser mais claro quando passar estas reflexões ao papel. Apesar das suas mais do que justas reservas, Maria da Paz não pôde impedir-se de o olhar com certa admiração, afinal ele é um habilitado professor de História, um profissional idóneo com provas dadas de competência, presume-se que saiba do que fala mesmo quando lhe aconteça ter de abordar assuntos fora da sua directa especialidade, ao passo que ela não passa de uma simples empregada bancária de nível médio, sem preparação para captar de maneira cabal quaisquer sinais ideológicos que não tenham começado, ao menos, por explicar como se chamam e o que pretendem. No entanto, ao longo de toda a fala de Tertuliano Máximo Afonso, apercebera-se de uma espécie de roce incómodo na sua voz, uma desarmonia que lhe distorcia em certos momentos a elocução, assim como o característico vibrato de uma vasilha rachada quando se lhe bate com os nós dos dedos, que acuda alguém a ajudar Maria da Paz, a informá-la de que justamente com aquele som é que as palavras nos saem da boca quando a verdade que parecemos estar a dizer é a mentira que escondemos. Pelos vistos, sim, pelos vistos vieram avisá-la, ou com as meias palavras do costume lho deram a entender, não há outra explicação para o facto de subitamente se ter apagado a admiração nos olhos dela e de no seu lugar ter surgido uma expressão dolorida, um ar de compassiva lástima, falta saber se de si própria ou do homem que se encontra sentado na sua frente. Tertuliano Máximo Afonso compreendeu que o discurso fora ofensivo, além de inútil, que são muitas as maneiras de faltar ao respeito que se deve à inteligência e à sensibilidade dos outros e que esta havia sido uma das mais grosseiras. Maria da Paz não veio aqui para que lhe dessem explicações acerca de procedimentos sem pés nem cabeça, seja qual for a ponta por onde se lhes pegue, veio para saber quanto terá de pagar para que lhe seja devolvida, se tal é possível ainda, a pequena felicidade em que imaginou haver vivido nos últimos seis meses. Mas também é certo que Tertuliano Máximo Afonso não lhe irá dizer, como a coisa mais natural deste mundo, Imagina que descobri um tipo que é meu exacto duplicado e que esse tipo aparece como actor em uns quantos destes filmes, em caso algum lho diria, e menos ainda, se é permitido juntar estas últimas palavras às imediatamente anteriores, quando a frase poderia ser interpretada por Maria da Paz como mais uma manobra de diversão, ela que veio aqui só para saber quanto terá de pagar para que lhe seja restituída a pequena felicidade em que imaginava haver vivido nos últimos seis meses, que nos seja perdoada esta repetição em nome do direito que a qualquer pessoa assiste de dizer uma e outra vez onde lhe dói. Fez-se um silêncio difícil, Maria da Paz deveria tomar agora a palavra, desafiá-lo Se já acabaste o teu estúpido discurso sobre essa patranha dos sinais ideológicos, falemos de nós, mas o medo deu-lhe de repente um nó na garganta, o pavor de que a mais simples palavra pudesse vir estilhaçar o cristal da sua frágil esperança, por isso se cala, por isso espera que Tertuliano Máximo Afonso principie, e Tertuliano Máximo Afonso está de olhos baixos, parece absorto na contemplação das suas chinelas de quarto e da pálida fímbria de pele que assoma onde terminam as perneiras das calças do pijama, a verdade é outra e bem diferente, Tertuliano Máximo Afonso não se atreve a levantar os olhos com medo de que eles se desviem para os papéis que estão em cima da secretária, a lista dos filmes e dos nomes dos actores, com as suas cruzinhas, os seus riscos, os seus pontos de interrogação, tudo tão apartado do malfadado discurso sobre os sinais ideológicos que neste momento lhe parece ter sido obra de outra pessoa. Ao contrário do que geralmente se pensa, as palavras auxiliadoras que abrem caminho aos grandes e dramáticos diálogos são em geral modestas, comuns, corriqueiras, ninguém diria que perguntar, Queres um café, poderia servir de introdução a um amargo debate sobre sentimentos que se perderam ou sobre a doçura de uma reconciliação a que não se sabe como chegar. Maria da Paz deveria ter respondido com a merecida secura, Não vim cá para tomar café, mas, olhando para dentro de si, viu que não era tal, viu que realmente tinha vindo para tomar um café, que a sua própria felicidade, imagine-se, dependeria desse café. Numa voz que só queria mostrar cansada resignação, mas que o nervosismo fazia tremer, disse, Pois sim, e acrescentou, Eu mesma o preparo. Levantou-se da cadeira, e não é que se tenha detido quando ia a passar ao lado de Tertuliano Máximo Afonso, como conseguiremos nós explicar o que se passou, juntamos palavras, palavras e palavras, as tais de que já falámos noutro sítio, um pronome pessoal, um advérbio, um verbo, um adjectivo, e, por mais que intentemos, por mais que nos esforcemos, sempre acabamos por nos encontrar do lado de fora dos sentimentos que ingenuamente tínhamos querido descrever, como se um sentimento fosse assim como uma paisagem com montanhas ao longe e árvores ao pé, mas o certo certo é que o espírito de Mana da Paz suspendeu subtilmente o movimento rectilíneo do corpo, à espera sabe-se lá de quê, talvez de que Tertuliano Máximo Afonso se levantasse para a abraçar, ou lhe pegasse suavemente na mão abandonada, e assim foi que sucedeu, primeiro a mão que reteve a mão, depois o abraço que não ousou ir além de uma proximidade discreta, ela não lhe ofereceu a boca, ele não a procurou, há ocasiões em que é mil vezes preferível fazer de menos que fazer de mais, entrega-se o assunto ao governamento da sensibilidade, ela, melhor que a inteligência racional, saberá proceder segundo o que mais convenha à perfeição plena dos instantes seguintes, se para tanto nasceram. Desprenderam-se devagar, ela sorriu um pouco, ele sorriu um pouco, mas nós sabemos que Tertuliano Máximo Afonso tem uma outra ideia na cabeça, que é retirar das vistas de Maria da Paz, o mais depressa possível, os papéis reveladores, por isso não se estranha que quase a tenha empurrado para a cozinha, Vai, vai fazer o café enquanto eu dou uma arrumação a este caos, e então aconteceu o inaudito, como se não desse importância às palavras que lhe saíam da boca ou como se não as entendesse completamente, ela murmurou, O caos é uma ordem por decifrar, Quê, que foi que disseste, perguntou Tertuliano Máximo Afonso, que já tinha a lista dos nomes a salvo, Que o caos é uma ordem por decifrar, Onde foi que leste isso, a quem o ouviste, Ocorreu-me neste momento, não creio que o tivesse lido alguma vez, e, ouvi-lo a alguém, isso tenho a certeza de que não, Mas como foi que te saiu uma frase dessas, Que tem de especial a frase, Tem muito, Não sei, talvez fosse porque o meu trabalho no banco se faz com algarismos, e os algarismos, quando se apresentam misturados, confundidos, podem aparecer como elementos caóticos a quem os não conheça, no entanto existe neles, latente, uma ordem, na verdade creio que os algarismos não têm sentido fora de uma qualquer ordem que se lhes dê, o problema está em saber encontrá-la, Aqui não há algarismos, Mas há um caos, foste tu mesmo que o disseste, Uns quantos vídeos desarrumados, nada mais, E também as imagens que lá estão dentro, pegadas umas às outras de maneira a contarem uma história, isto é, uma ordem, e os caos sucessivos que elas formariam se as dispersássemos antes de tornar a pegá-las para organizar histórias diferentes, e as sucessivas ordens que assim iríamos obtendo, sempre deixando atrás um caos ordenado, sempre avançando para dentro de um caos por ordenar, Os sinais ideológicos, disse Tertuliano Máximo Afonso, pouco seguro de que a referência viesse a propósito, Sim, os sinais ideológicos, se assim o queres, Dá a impressão de que não acreditas em mim, Não importa se acredito em ti ou não, tu lá saberás o que andas a procurar, O que me custa a perceber é como foi que te ocorreu esse achado, a ideia de uma ordem contida no caos e que pode ser decifrada no interior dele, Queres dizer que em todos estes meses, desde que a nossa relação principiou, nunca me consideraste suficientemente inteligente para ter ideias, Ora essa, não se trata disso, tu és uma pessoa bastante inteligente, no entanto, No entanto, não precisas terminar, menos inteligente do que tu, e, claro está, falta-me a boa preparaçãozinha básica, sou uma pobre empregada bancária, Deixa-te de ironias, nunca pensei que fosses menos inteligente do que eu, o que quero dizer é que essa tua ideia é absolutamente surpreendente, Inesperada em mim, De certo modo, sim, O historiador és tu, mas julgo saber que os nossos antepassados só depois de terem tido as ideias que os fizeram inteligentes é que começaram a ser suficientemente inteligentes para terem ideias, Agora saíste-me paradoxal, eis-me caindo de assombro em assombro, disse Tertuliano Máximo Afonso, Antes que acabes por te transformar em estátua de sal, vou fazer o café, sorriu-se Maria da Paz, e enquanto seguia pelo corredor que a levava à cozinha, foi dizendo, Arruma o caos, Máximo, arruma o caos. A lista dos nomes foi rapidamente metida numa gaveta e fechada à chave, as cassetes soltas voltaram às caixas respectivas, O Paralelo do Terror, que havia ficado no leitor de vídeos, seguiu o mesmo caminho, nunca tinha sido tão fácil ordenar um caos desde que o mundo é mundo. Tem-nos, porém, ensinado a experiência que sempre algumas pontas ficam por atar, sempre algum leite se entorna pelo caminho, sempre algum alinhamento faz barriga para dentro ou para fora, o que, aplicado à situação em análise, significa que Tertuliano Máximo Afonso está consciente de que já leva a sua guerra perdida antes de a ter começado. No ponto a que as coisas chegaram, por causa da superior estupidez do seu discurso sobre os sinais ideológicos, e agora com o golpe de mestre que foi aquela frase sobre a existência de uma ordem no caos, uma ordem decifrável, é impossível dizer à mulher que está lá dentro a fazer o café, A nossa relação chegou ao fim, poderemos continuar como amigos no futuro, se quiseres, mas nada mais do que isso, ou então, Custa-me muito dar-te este desgosto, mas, pesando os meus sentimentos para contigo, já não encontro o entusiasmo do princípio, ou ainda, Foi bonito, foi, mas acabou-se, minha rica, a partir de hoje tu vais à tua vida e eu vou à minha. Tertuliano Máximo Afonso dá voltas à conversa a tentar descobrir em que foi que a sua táctica fracassou, se é que tinha de facto alguma, se é que não se deixou apenas dirigir pelas mudanças de humor de Maria da Paz, como se se tratasse de súbitos focos de incêndio que era necessário ir apagando à medida que surgiam, sem entretanto se dar conta de que o fogo continuava a lavrar-lhe debaixo dos pés. Ela sempre esteve mais segura do que eu, pensou, e neste momento viu distintamente as causas da sua derrota, esta caricata figura que fazia despenteado e de barba crescida, com os chinelos de quarto acalcanhados, as riscas das calças do pijama a aparecerem como franjas murchas, o roupão ponta abaixo ponta acima, há decisões na vida que para Tomá-las é aconselhável estar vestido para sair, já de gravata posta e sapatos engraxados, a isso se chama a maneira nobre, exclamar em tom ofendido, Se a minha presença a incomoda, senhora, não preciso que mo diga, e acto contínuo sai-se pela porta fora, sem olhar para trás, olhar para trás é um risco tremendo, pode a pessoa transformar-se em estátua de sal e ficar para ali à mercê da primeira chuva. Mas Tertuliano Máximo Afonso tem agora outro problema para resolver, e esse requer muito tacto, muita diplomacia, uma habilidade de manobra que até este momento lhe tem faltado, uma vez que, como vimos, a iniciativa sempre esteve nas mãos de Maria da Paz, até mesmo quando à chegada se lançou aos braços do amante como uma mulher a ponto de afogar-se. Foi precisamente isto o que Tertuliano Máximo Afonso pensou, dividido entre a admiração, a contrariedade e uma espécie de perigosa ternura, Parecia que estava a afogar-se e afinal tinha os pés bem assentes no chão. Voltando ao problema, o que Tertuliano Máximo Afonso não poderá permitir-se é deixar Maria da Paz sozinha na sala. Imaginemos que ela aparece com o café, aliás não se compreende por que é que está a demorar-se tanto, um café faz-se em três minutos, já estamos longe do tempo em que era preciso coá-lo, imaginemos que, depois de o terem tomado em santa harmonia, ela lhe diz com segundas intenções ou mesmo sem primeiras, Vai-te arranjar enquanto eu ponho aqui um destes vídeos, a ver se descubro algum dos teus famosos sinais ideológicos, imaginemos que uma sorte maldita quereria que aparecesse na figura de um porteiro de buate ou de um caixa de banco o duplicado de Tertuliano Máximo Afonso, imaginemos o grito que daria Maria da Paz, Máximo, Máximo, vem cá, corre, vem ver um actor igualzinho a ti, a um auxiliar de enfermagem, realmente, poderá chamar-se-lhe tudo, bom samaritano, providência divina, irmão de caridade, sinal ideológico é que não. Nada disto, porém, irá suceder, Maria da Paz trará o café, já se lhe ouvem os passos no corredor, a bandeja com as duas chávenas e o açucareiro, umas bolachas para confortar o estômago, e tudo se passará como Tertuliano Máximo Afonso nunca teria ousado sonhar, beberam o cafezinho calados, mas era um silêncio de companhia, não hostil, o perfeito bem-estar doméstico que para Tertuliano Máximo Afonso se converteu em glória bendita quando a ouviu dizer, Enquanto tu te arranjas, eu arrumo o caos da cozinha, depois deixo-te em paz com o teu estudo, Ora, ora, o estudo, não falemos mais do estudo, disse Tertuliano Máximo Afonso para retirar esta inoportuna pedra do meio do caminho, mas cônscio de que tinha acabado de pôr outra no lugar dela, mais difícil de remover, como não tardará a verificar-se. Fosse como fosse, Tertuliano Máximo Afonso não queria deixar nada entregue ao acaso, barbeou-se num ai, lavou-se num ámen, vestiu-se num suspiro, e tão rapidamente fez tudo isto que quando entrou na cozinha ainda foi muito a tempo de secar a louça. Viveu-se então nesta casa o quadro tão enternecedoramente familiar que é um homem enxugando os pratos e a mulher arrumando-os, poderia ter sido ao contrário, mas o destino ou o azar, chamem-lhe o que quiserem, decidiu que fosse assim para que tivesse de acontecer o que aconteceu num momento em que Maria da Paz levantava altos os braços para acomodar uma travessa numa prateleira, oferecendo sem dar por isso, ou sabendo-o muito bem, a cintura delgada às mãos de um homem que não foi capaz de resistir à tentação. Tertuliano Máximo Afonso deixou a um lado o pano da louça e, enquanto a chávena, que se escapara, se estilhaçava no chão, abraçou-se a Maria da Paz, apertou-a furiosamente contra si, o espectador mais objectivo e imparcial não teria dúvidas em admitir que o chamado entusiasmo do princípio nunca poderia ter sido maior que este. A questão, a dolorosa e sempiterna questão, é saber quanto tempo irá isto durar, se será realmente o reacender de um afecto que algumas vezes terá sido confundido com amor, com paixão, até, ou se só nos encontramos, e mais uma vez, perante o arquiconhecido fenómeno da vela que ao extinguir-se levanta uma luz mais alta e insuportavelmente brilhante, insuportável só por ser a derradeira, não porque a rejeitassem os nossos olhos, que bem quereriam continuar absortos nela. Diz-se e repete-se que enquanto o pau vai e vem folgam as costas, ora, as costas, propriamente ditas, são o que menos está folgando neste momento, diríamos até, se aceitássemos ser grosseiros, que muito mais estará folgando ele, mas o certo, embora não se encontrem aqui grandes razões para lirismos exaltados, é que a alegria, o prazer, o gozo destes dois, atirados sobre a cama, um sobre o outro, literalmente enganchados de pernas e braços, nos levaria a tirar respeitosamente o chapéu e a desejar que lhes seja assim para sempre, estes, ou cada um deles com quem a sorte os vier a emparceirar no futuro, se a vela que está agora a arder não durar mais que o breve e último espasmo, aquele que no mesmo instante em que nos derrete nos costuma endurecer e apartar. Os corpos, os pensamentos. Tertuliano Máximo Afonso pensa nas contradições da vida, no facto de que para ganhar uma batalha às vezes possa ser necessário perdê-la, veja-se este caso de agora, ganhar teria sido conduzir a conversa no sentido do ansiado, total e definitivo rompimento, e essa batalha, pelo menos para os tempos mais próximos, teve de dá-la por perdida, mas ganhar seria conseguir desviar dos vídeos e do imaginário estudo sobre os sinais ideológicos a atenção de Maria da Paz, e essa batalha, por agora, ganhou-a. Diz a sabedoria popular que nunca se pode ter tudo, e não lhe falta razão, o balanço das vidas humanas joga constantemente sobre o ganho e o perdido, o problema está na impossibilidade, igualmente humana, de nos pormos de acordo sobre os méritos relativos do que se deveria perder e do que se deveria ganhar, por isso o mundo está no estado em que o vemos. Maria da Paz também pensa, mas, sendo mulher, portanto mais próxima das coisas elementares e essenciais, recorda a angústia que trazia na alma quando entrou nesta casa, a sua certeza de que se iria daqui vencida e humilhada, e afinal acontecera o que em nenhum momento lhe tinha passado pela fantasia, estar na cama com o homem a quem amava, o que mostra quanto tem ainda de aprender esta mulher se ignora que muitas dramáticas discussões dos casais é ali que acabam e se resolvem, não porque os exercícios do sexo sejam a panaceia de todos os males físicos e morais, embora não falte quem assim pense, mas porque, esgotadas as forças dos corpos, os espíritos aproveitam para levantar timidamente o dedo e pedir autorização para entrar, perguntam se se lhes permite fazer ouvir as suas razões, e se eles, corpos, estão preparados para lhes dar atenção. É então quando o homem diz à mulher, ou a mulher ao homem, Que loucos somos, que estúpidos temos sido, e um deles, misericordiosamente, cala a resposta justa que seria, Tu, talvez, eu só tenho estado à tua espera. Ainda que pareça impossível, é este silêncio cheio de palavras não ditas que salva o que se julgava perdido, como uma jangada que avança do nevoeiro a pedir os seus marinheiros, com os seus remos e a sua bússola, a sua vela e a sua arca do pão. Propôs Tertuliano Máximo Afonso, Podíamos almoçar os dois, não sei é se estás disponível, Naturalmente que sim, sempre estive, Tens lá a tua mãe, queria dizer, Explique-lhe que me apetecia dar um passeio sozinha, que talvez não fosse comer a casa, Uma desculpa para vires aqui, Não precisamente, foi só depois de ter saído de casa que decidi vir falar contigo, Já está falado, Queres dizer, perguntou Maria da Paz, que tudo entre nós continuará como antes, Claro. Esperar-se-ia um pouco mais de eloquência de Tertuliano Máximo Afonso, mas ele sempre poderá defender-se, Não tive tempo, ela agarrou-se a mim aos beijos, e logo eu a ela, daí a nada estávamos outra vez enroscados, foi um que-deus-te-ajude, E ajudou, perguntou a voz desconhecida que há tanto tempo não ouvíamos, Não sei se foi ele, mas lá que valeu a pena, valeu, E agora, Agora, vamos almoçar, E não falam mais do assunto, Qual assunto, O vosso, Já está falado, Não está, Está, Então acabaram-se as nuvens, Acabaram, Quer dizer que já não pensa em rompimentos, Isso é outra coisa, deixemos para o dia de amanhã o que ao dia de amanhã pertence, É uma boa filosofia, A melhor, Desde que se saiba o que é que pertence a esse dia de amanhã, Enquanto lá não chegarmos não se pode saber, Tem resposta para tudo, Também você a teria se se encontrasse na necessidade de mentir tanto quanto eu tenho mentido nos últimos dias, Então, vão almoçar, Pois vamos, Bom proveito, e depois, Depois levo-a a casa e volto, Para ver os vídeos, Sim, para ver os vídeos, Bom proveito, despediu-se a voz desconhecida. Maria da Paz já se tinha levantado, ouvia-se correr a água do duche, em tempos idos sempre se lavavam juntos depois de terem feito amor, mas desta vez nem ela se lembrou nem ele se fez lembrado, ou lembraram-se ambos, mas preferiram calar, há momentos em que o melhor é contentar-se uma pessoa com o que já tem, não seja que se perca tudo.

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