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Para o relator, ou narrador, na mais do que provável hipótese de se preferir uma figura beneficiada com o sinete da aprovação académica, o mais fácil, chegado a este ponto, seria escrever que o percurso do professor de História através da cidade, e até entrar em casa, não teve história. Como uma máquina manipuladora do tempo, mormente no caso de o escrúpulo profissional não ter permitido a invenção de uma zaragata de rua ou de um acidente de trânsito com a única finalidade de encher os vazios da intriga, aquelas três palavras, Não Teve História, empregam-se quando há urgência em passar ao episódio seguinte ou quando, por exemplo, não se sabe muito bem que fazer com os pensamentos que a personagem está a ter por sua própria conta, sobretudo se não têm qualquer relação com as circunstâncias vivenciais em cujo quadro supostamente se determina e actua. Ora, nesta exacta situação se encontrava o professor e novel amador de vídeos Tertuliano Máximo Afonso enquanto ia guiando o seu carro. É verdade que pensava, e muito, e com intensidade, mas os pensamentos dele eram a tal extremo alheios ao que nas últimas vinte e quatro horas tinha andado a viver, que se resolvêssemos tomá-los em consideração e os trasladássemos a este relato, a história que nos havíamos proposto contar teria de ser inevitavelmente substituída por outra. É certo que poderia valer a pena, melhor ainda, uma vez que conhecemos tudo sobre os pensamentos de Tertuliano Máximo Afonso, sabemos que valeria a pena, mas isso representaria aceitar como baldados e nulos os duros esforços até agora cometidos, estas quarenta compactas e trabalhosas páginas já vencidas, e voltar ao princípio, à irónica e insolente primeira folha, desaproveitando todo um honesto trabalho realizado para assumir os riscos de uma aventura, não só nova e diferente, mas também altamente perigosa, que, não temos dúvidas, a tanto os pensamentos de Tertuliano Máximo Afonso nos arrastariam. Fiquemos portanto com este pássaro na mão em vez da decepção de ver dois a voar. Além disso, não há tempo para mais. Tertuliano Máximo Afonso acabou de arrumar o carro, percorre a pequena distância que o separa de casa, numa das mãos leva a sua pasta de professor, na outra o saco de plástico, que pensamentos haveria de ter agora se não deitar contas a quantos vídeos irá conseguir visionar, bicudo verbo, antes de ir para a cama, é o resultado de interessar-se por secundários, fosse este uma estrela e tê-lo-íamos aí logo às primeiras imagens. Tertuliano Máximo Afonso já abriu a porta, já entrou, também já fechou a porta, põe a pasta em cima da secretária e, ao lado, o saco com os vídeos. O ar está limpo de presenças, ou talvez simplesmente não se notem, como se o que aqui entrou ontem à noite se tivesse tornado, entretanto, parte inseparável da casa. Tertuliano Máximo Afonso foi ao quarto mudar de roupa, abriu o frigorífico da cozinha para ver se lhe apetecia algo do que tinha dentro, tornou a fechá-lo e voltou à sala com um copo e uma lata de cerveja. Tirou os vídeos do saco e dispô-los por ordem de datas de produção, desde o mais antigo, O Código Maldito, dois anos antes do já visto Quem Porfia Mata Caça, até ao mais recente, A Deusa do Palco, do ano passado. Os quatro restantes, também seguindo a mesma ordem, são Passageiro Sem Bilhete, A Morte Ataca de Madrugada, O Alarme Tocou Duas Vezes e Telefona-me Outro Dia. Um movimento reflexo, involuntário, provocado certamente pelo último destes títulos, fê-lo virar a cabeça para o seu próprio telefone. A luz que informava haver chamadas no gravador estava acesa. Hesitou uns segundos, mas acabou por carregar no botão que as faria ouvir. A primeira era de uma voz feminina que não se anunciou, provavelmente por de antemão saber que a reconheceriam, disse apenas, Sou eu, e logo continuou, Não sei o que se passa contigo, há uma semana que não me telefonas, se a tua intenção é acabar, melhor que mo digas na cara, o facto de termos discutido no outro dia não devia ser motivo para esse silêncio, mas tu lá sabes, quanto a mim sei que gosto de ti, adeus, um beijo. A segunda chamada foi da mesma voz, Por favor, telefona-me. Havia uma terceira chamada, mas essa era do colega de Matemática, Meu caro, dizia, tenho a impressão de que você hoje se aborreceu comigo, mas, com toda a sinceridade, não recordo o que é que eu possa ter feito ou dito para que tal sucedesse, penso que deveríamos conversar, esclarecer qualquer mal-entendido que se tenha metido entre nós, se eu tiver de vir a pedir-lhe desculpas, rogo-lhe que tome já esta chamada como o princípio delas, um abraço, creio que deve saber que sou seu amigo. Tertuliano Máximo Afonso franziu as sobrancelhas, recordava vagamente que acontecera na escola algo irritante ou desagradável em que entrava o de Matemática, mas não conseguia lembrar-se do que fosse. Fez desandar o mecanismo de escuta, ouviu novamente as duas primeiras chamadas, desta vez com um meio sorriso e uma expressão fisionómica daquelas a que costumamos chamar sonhadoras. Levantou-se para retirar do leitor a cassete de Quem Porfia Mata Caça e introduzir-lhe O Código Maldito, mas no último momento, já com o dedo no botão de arranque, apercebeu-se de que, se o fizesse, iria cometer uma gravíssima infracção, saltar um dos pontos sequenciais do plano de acção que havia elaborado, isto é, copiar do final de Quem Porfia Mata Caça os nomes dos secundários de terceira ordem, esses que, não obstante preencherem um tempo e um espaço na historieta, não obstante pronunciarem algumas palavras e servirem de satélites, minúsculos, claro está, ao serviço dos enlaces e das órbitas cruzadas das estrelas, não têm direito a um nome daqueles de pôr e tirar, tão necessários na vida como na ficção, embora talvez não pareça bem dizê-lo. É certo que o poderia fazer depois, em qualquer altura, mas a ordem, como do cão se diz também, é a melhor amiga do homem, embora, como o cão, de quando em quando morda. Ter um lugar para cada coisa e ter cada coisa no seu lugar sempre foi uma regra de ouro nas famílias que prosperaram, assim como tem sido abundantemente demonstrado que executar em boa ordem o que se deve foi sempre a mais sólida apólice de seguro contra as avantesmas do caos. Tertuliano Máximo Afonso pôs a correr rapidamente para o fim a já conhecida fita de Quem Porfia Mata Caça, travou-a onde lhe interessava, na tal lista dos secundários, e, com a imagem parada, copiou para uma folha de papel os nomes dos homens, só os dos homens, porque desta vez, contra o que tem sido habitual, o objecto da busca não é uma mulher. Supomos que o que aí ficou dito foi mais do que bastante para se poder entender a operação que Tertuliano Máximo Afonso havia delineado na sua árdua cavilação, ou seja, proceder à identificação do recepcionista do hotel, esse que foi o seu retrato escrito e escarrado no tempo em que usava bigode, que certamente o continua a ser agora, sem ele, e quem sabe se amanhã também, quando as entradas do cabelo nas fontes de um começarem a abrir caminho em direcção à calvície do outro. O que Tertuliano Máximo Afonso se propôs, no fim de contas, foi uma modesta repetição do prestidigitado ovo-de-colombo, tomar nota de todos os nomes de actores secundários, tanto dos filmes em que tenha participado o empregado do hotel como daqueles a que não tenha sido chamado. Por exemplo, se neste filme que acaba de introduzir no leitor, O Código Maldito, não lhe aparecer a sua cópia humana, poderá riscar na primeira lista todos aqueles nomes que em Quem Porfia Mata Caça se repetirem, Já sabemos que para um neanderthal não lhe serviria de nada a cabeça se se visse numa situação destas, mas para um professor de História, habituado a lidar com figuras dos mais desvairados lugares e épocas, considere-se que ainda ontem esteve a ler no erudito livro sobre as antigas civilizações mesopotâmicas o capítulo que trata dos semitas amorreus, esta versão pobre do tesouro escondido não passa de uma brincadeira de crianças que talvez não devesse ter merecido da nossa parte tão miúda e circunstanciada explicação. Afinal, ao contrário do que antes havíamos suposto, o recepcionista do hotel reapareceu mesmo em O Código Maldito, agora na figura de um caixa de banco que, sob a ameaça de uma pistola e exagerando os tremeliques de medo, decerto para tornar-se mais convincente aos insatisfeitos olhos do realizador, não teve outro remédio que transferir o conteúdo do cofre para uma bolsa que o assaltante lhe tinha atirado pelo guichê dentro, ao mesmo tempo que rosnava com a boca torcida que caracteriza o género gangsteril, Ou tu me enches o saco, ou eu te encho de chumbo, escolhe. Fazia bom uso dos verbos e das conjugações reflexas, este bandido. O caixa interveio mais duas vezes na acção, a primeira para responder a perguntas da polícia, a segunda quando o gerente do banco decidiu retirá-lo do balcão porque, traumatizado pelo sucedido, todos os clientes tinham começado a parecer-lhe ladrões. Faltou dizer que este caixa de banco usava o mesmo tipo de bigode fino e lustroso que o empregado do hotel. Desta vez, Tertuliano Máximo Afonso já não sentiu suores frios a escorrerem-lhe pelas costas abaixo, já não lhe tremeram as mãos, parava a imagem por alguns segundos, observava-a com uma curiosidade fria, e seguia adiante. Tratando-se de um filme em que o homem idêntico, sósia, siamês desligado, prisioneiro do castelo de zenda ou algo ainda à espera de classificação havia participado, o método para prosseguir na busca da sua identidade real teria de ser naturalmente diferente, marcando-se agora todos os nomes que, em comparação com a primeira lista, aparecessem repetidos na segunda. Foram dois, apenas dois, os que Tertuliano Máximo Afonso assinalou com uma cruz. Ainda vinha distante a hora de jantar, o apetite não dava a mínima mostra de impaciência, poderia portanto ver o filme que cronologicamente se seguia, Passageiro Sem Bilhete era o seu título, e bem poderiam ter-lhe chamado Tempo Perdido, ao homem da máscara de ferro não o haviam contratado. Tempo perdido, diz-se, mas afinal não tanto, porque graças a ele alguns nomes mais puderam ser riscados na primeira lista e na segunda, Por exclusão de partes, hei-de conseguir lá chegar, disse em voz alta Tertuliano Máximo Afonso, como se de repente tivesse sentido a necessidade de uma companhia. O telefone tocou. O menos provável de todos os possíveis era que se tratasse do colega de Matemática, o mais possível de todos os prováveis era que fosse a mesma mulher que antes fizera as duas chamadas. Também podia ser a mãe querendo saber lá de longe como estava de saúde o filho querido. Após uns quantos toques, o telefone calou-se, sinal de que o mecanismo do gravador entrara em funcionamento, a partir de agora as palavras registadas ficarão à espera de quando e quem as quiser escutar, a mãe que pergunta, Como tens passado, meu filho, o amigo que insiste, Não creio ter feito nada errado, a amante que se desespera, Não te merecia isto. Seja o que for que se encontre ali dentro, a Tertuliano Máximo Afonso não lhe apetece ouvi-lo. Para se distrair, mais porque o estômago tivesse reclamado alimento, foi à cozinha preparar uma sanduíche e abrir outra cerveja. Sentou-se num banco, mastigou sem prazer a escassa comida, enquanto o pensamento, deixado à solta, se entregava aos seus devaneios. Percebendo que a vigilância consciente tinha esmorecido numa espécie de delíquio, o senso comum, que depois da sua enérgica primeira intervenção havia andado não se sabe por onde, insinuou-se entre dois fragmentos inconclusos daquele vago discorrer e perguntou a Tertuliano Máximo Afonso se ele se sentia feliz com a situação que tinha criado. Devolvido ao sabor amargo de uma cerveja que perdera rapidamente a frescura e à mole e húmida consistência de um fiambre de baixa qualidade espremido entre duas fatias de falso pão, o professor de História respondeu que a felicidade não tinha nada que ver com o que se estava a passar ali, e, quanto à situação, pedia licença para recordar que não fora ele quem a criara. De acordo, não a criaste tu, respondeu o senso comum, mas a maior parte das situações em que nos metemos nunca teriam chegado tão longe se não as tivéssemos ajudado, e tu não me vais negar que ajudaste esta, Tratou-se de pura curiosidade, nada mais, Já discutimos isso, Tens alguma coisa contra a curiosidade, O que eu estou a observar é que a vida, até agora, não te ensinou a compreender que a nossa melhor prenda, nossa do senso comum, tem sido precisamente, e desde sempre, a curiosidade, Em minha opinião, senso comum e curiosidade são incompatíveis, Como te enganas, suspirou o senso comum, Prova-mo, Quem julgas tu que inventou a roda, Não sabemos, Sabemos, sim senhor, a roda foi inventada pelo senso comum, só uma enorme quantidade de senso comum é que teria sido capaz de a inventar, E a bomba atómica, foi também o teu senso comum que a inventou, perguntou Tertuliano Máximo Afonso no tom triunfante de quem acabou de apanhar o adversário descalço, Não, essa não, a bomba atómica inventou-a também um senso, mas esse de comum não tinha nada, O senso comum, perdoa-me que to diga, é conservador, aventuro-me mesmo a afirmar que é reaccionário, Essas cartas acusatórias sempre chegam, mais cedo ou mais tarde toda a gente as escreve e toda a gente as recebe, Então será certo, se são assim tantos os que têm estado de acordo em escrevê-las e os que não têm outra alternativa que recebê-las, a não ser escrevê-las também, Devias saber que estar de acordo nem sempre significa compartilhar uma razão, o mais de costume é reunirem-se pessoas à sombra de uma opinião como se ela fosse um guarda-chuva, Tertuliano Máximo Afonso abriu a boca para responder, se a expressão abriu a boca é permitida tratando-se de um diálogo todo ele silencioso, todo ele mental, como foi o caso deste, mas o senso comum já ali não estava, tinha-se retirado sem ruído, não propriamente derrotado, mas indisposto consigo mesmo por ter permitido que a conversa se desviasse do assunto que o tinha feito reaparecer. Se é que não fora simplesmente sua a culpa de que assim tivesse sucedido. De facto, não é raro que o senso comum se equivoque nas sequências, para mal depois de ter inventado a roda, para pior depois de ter inventado a bomba atómica. Tertuliano Máximo Afonso olhou o relógio, fez contas ao tempo que lhe tomaria outro filme, na verdade começava a sentir os efeitos da mal dormida noite anterior, as pálpebras, com a ajuda também da cerveja, pesavam-lhe como chumbo, mesmo a abstracção em que há pouco caíra não devia ter tido outra causa. Se vou já para a cama, disse, acordo provavelmente daqui por duas ou três horas, e depois é pior. Decidiu ver um bocado de A Morte Ataca de Madrugada, até podia ser que o tipo não entrasse neste filme, isso simplificaria tudo, saltaria para o final, tomaria nota dos nomes, e então, sim, iria para a cama.

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