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Tertuliano Máximo Afonso entrou no automóvel, a primeira ideia é afastar-se daqui, ir estacionar num sítio tranquilo para reflectir a sério sobre a situação, pôr em ordem a confusão que há vinte e quatro horas se atropela dentro da sua cabeça, e, finalmente, decidir o que fará. Pôs o carro em andamento, e foi só virar a esquina e compreender que não precisava para nada de pensar, que o que tinha de fazer era simplesmente telefonar a Maria da Paz, é incrível como não me ocorreu antes, teria sido por estar fechado naquela casa e dali não poder fazer a chamada. Poucas centenas de metros adiante encontrou uma cabina telefónica. Parou o carro, entrou de um salto e rapidamente marcou o número. Dentro da cabina fazia um calor sufocante. A voz de mulher que perguntou de lá, Quem fala, não era sua conhecida, Desejava falar com a Maria da Paz, disse, Sim, mas, quem fala, Sou um colega dela, do banco onde trabalha, A menina Maria da Paz morreu esta manhã, um desastre de automóvel, vinha com o noivo e morreram os dois, foi uma desgraça, uma grande desgraça. Em um instante, da cabeça aos pés, o corpo de Tertuliano Máximo Afonso ficou alagado de suor. Balbuciou algumas palavras que a mulher não conseguiu perceber, Que disse, que foi que disse, algumas palavras que já não recorda nem recordará, que se lhe esqueceram para sempre, e, sem se dar conta do que fazia, como um autómato a que de repente foi cortada a energia, deixou cair o auscultador. Imóvel dentro da fornalha da cabina, ouvia uma palavra, uma só, a retumbar-lhe nos ouvidos, Morreu, mas logo outra palavra lhe veio tomar o lugar, e essa gritava, Mataste-a. Não a matou por condução temerária António Claro, supondo que tivesse sido essa a causa do acidente, matou-a ele, Tertuliano Máximo Afonso, matou-a a sua fraqueza moral, matou-a uma vontade que o tomou cego para tudo quanto não fosse a desforra, foi dito que um deles, ou o actor, ou o professor de História, estava a mais neste mundo, mas tu não, tu não estavas a mais, de ti não existe um duplicado que venha substituir-te ao lado da tua mãe, tu sim, eras única, como qualquer pessoa comum é única, verdadeiramente única. Diz-se que só odeia o outro quem a si mesmo se odiar, mas o pior de todos os ódios deve ser aquele que leva a não suportar a igualdade do outro, e provavelmente será ainda pior se essa igualdade vier a ser alguma vez absoluta. Tertuliano Máximo Afonso saiu da cabina cambaleando em passos de bêbedo, meteu-se no carro com violência, como se se atirasse a si mesmo para dentro, e ali ficou, olhando em frente sem ver, até que não pôde aguentar mais e as lágrimas e os soluços lhe sacudiram o peito. Neste momento ama Maria da Paz como nunca a tinha amado antes nem nunca a chegaria a amar no futuro. A dor que sente é da perda dela que nasce, mas a consciência da sua culpa é o que está esvurmando uma ferida que irá segregar pus e merda para sempre. Algumas pessoas olharam-no com aquela curiosidade gratuita e impotente que não faz nem bem nem mal ao mundo, mas uma delas aproximou-se a perguntar se lhe podia ser útil em alguma coisa, e ele disse que não muito obrigado, e por ter agradecido chorou ainda mais, foi como se lhe tivessem vindo pôr uma mão no ombro e lhe dissessem, Tenha paciência, com o tempo o seu desgosto há-de passar, é verdade, com o tempo tudo passa, mas há casos em que o tempo se demora a dar tempo para que a dor se canse, e casos houve e haverá, felizmente mais raros, em que nem a dor se cansou nem o tempo passou. Esteve assim até não ter mais lágrimas para chorar, até que o tempo decidiu pôr-se outra vez em movimento e perguntar, E agora, aonde pensas tu ir, e eis que Tertuliano Máximo Afonso, de acordo com todas as probabilidades convertido em António Claro para o resto da vida, compreendeu que não tinha onde acolher-se. Em primeiro lugar, a casa a que antes chamava sua pertencia a Tertuliano Máximo Afonso, e Tertuliano Máximo Afonso está morto, em segundo lugar, não pode ir daqui à casa que era de António Claro e dizer a Helena que o seu marido morreu porque, para ela, António Claro é ele próprio, e, finalmente, quanto à casa de Maria da Paz, aonde aliás nunca foi convidado, só se fosse para apresentar uns inúteis pêsames à pobre mãe órfã da sua filha. O natural seria que neste exacto momento Tertuliano Máximo Afonso pensasse em uma outra mãe que, se já foi informada da triste novidade, igualmente estará chorando as lágrimas inconsoláveis da orfandade materna, mas a firme consciência de que, entre ele e ele mesmo, é e sempre há-de ser Tertuliano Máximo Afonso, e que, por consequência, está vivo como tal, devia ter-lhe bloqueado temporariamente o que de certeza teria sido, em outras circunstâncias, o seu primeiro impulso. Por enquanto ainda terá de encontrar resposta à pergunta que havia ficado atrás, E agora, aonde pensas tu ir, dificuldade, vendo bem, das mais fáceis de resolver numa cidade que nem necessitaria ser a metrópole imensa que esta é, com hotéis e pensões para todos os gostos e preços. Aí é que terá de ir, e não apenas por algumas horas para se defender do calor e chorar à vontade. Uma coisa foi ter dormido a noite passada com Helena, quando fazê-lo não passava de um simples lance de jogo, se tu vais dormir com a minha mulher, eu vou dormir com a tua, isto é, olho por olho, dente por dente, como manda a lei de talião, nunca com mais propriedade aplicada como neste caso, porque, significando a nossa actual palavra idêntico o mesmo que o étimo latino talis, donde o nome lhe veio, se idênticos foram os delitos cometidos, idênticos foram também os que os cometeram. Um coisa, permita-se-nos que voltemos ao começo da frase, foi haver passado a noite com Helena quando ninguém podia adivinhar que a morte se estava a preparar para entrar no jogo e dar xeque-mate, outra coisa seria, sabendo-se que António Claro está morto, e mesmo que amanhã os jornais digam que o defunto se chamava Tertuliano Máximo Afonso, ir dormir segunda noite com ela, carregando assim sobre um engano outro engano pior. Nós, seres humanos, embora continuemos a ser, uns mais, outros menos, tão animais como antes, temos alguns sentimentos bons, às vezes até um resto ou um princípio de respeito por nós próprios, e este Tertuliano Máximo Afonso, que em tantas ocasiões se comportou de modo a justificar as nossas mais acerbas censuras, não ousará dar o passo que, aos nossos olhos, de uma vez para sempre o condenaria. Irá portanto à procura de um hotel, e amanhã se verá. Pôs o carro em marcha e conduziu-o em direcção ao centro, onde terá mais possibilidades de escolha, no fim de contas bastar-lhe-á um hotelzinho de duas estrelas, é só por uma noite, E quem me diz a mim que vai ser só por uma noite, pensou, aonde irei eu dormir amanhã, e depois, e depois, e depois, pela primeira vez o futuro apareceu-lhe como um lugar em que certamente continuarão a ser precisos os professores de História, mas não este, em que o próprio actor Damel Santa-Clara não terá outro remédio que renunciar à sua auspiciosa carreira, em que será preciso descobrir um qualquer ponto de equilíbrio que exista entre ter sido e continuar a ser, sem dúvida é reconfortante que a nossa consciência nos diga, Sei quem és, mas ela própria poderá começar a duvidar de nós e do que diz se perceber, ao redor, que as pessoas andam a passar umas às outras a incómoda pergunta, E este, quem é.

O primeiro que teve oportunidade de manifestar esta curiosidade pública foi o empregado da recepção do hotel quando a Tertuliano Máximo Afonso pediu um documento que o identificasse, e há que dar graças ao céu por não lhe ter perguntado primeiro como se chamava, porque bem poderia ter sucedido que Tertuliano Máximo Afonso tivesse deixado sair, pela força do hábito, o nome que durante trinta e oito anos havia sido o seu e agora é pertença de um corpo destroçado que numa câmara frigorífica qualquer aguarda a autópsia a que os mortos de acidente por via de regra não escapam. O cartão de identidade que apresentou tem pois o nome de António Claro, a cara da fotografia aposta nele é a mesma que o recepcionista tem na sua frente e que detidamente se poria a examinar se houvesse razão para dar-se a esse trabalho. Não a há, Tertuliano Máximo Afonso já assinou a sua ficha de hóspede, nestes casos serve um simples rabisco desde que mostre alguma semelhança com a assinatura formal, já tem a chave do quarto na mão, já disse que não traz bagagem, e para reforçar uma verosimilhança que ninguém lhe havia pedido, explicou que perdeu o avião, que deixou as malas no aeroporto, e por isso é que não fica mais que uma noite. Tertuliano Máximo Afonso mudou de nome, mas continua a ser a mesma pessoa que acompanhámos à loja dos vídeos, que sempre fala mais do que é preciso, que não sabe ser natural, o que lhe valeu foi que o empregado da recepção tem outros assuntos em que pensar, o telefone que toca, uns quantos estrangeiros que acabam de chegar ajoujados de malas e sacos de viagem. Tertuliano Máximo Afonso subiu ao quarto, pôs-se à vontade, foi à casa de banho para aliviar a bexiga, salvo ter perdido o avião, como disse ao recepcionista, parecia que não tinha outras preocupações, mas isso foi enquanto não se estendeu na cama com a intenção de descansar um pouco, imediatamente a imaginação lhe pôs diante um automóvel reduzido a um montão de sucata e dentro dele, miseramente sangrando, dois corpos destroçados. Voltaram as lágrimas, voltaram os soluços, e sabe-se lá por quanto tempo continuaria assim se de súbito a escandalizada recordação da mãe não tivesse irrompido no seu desnorteado cérebro. Sentou-se de um pulo, deitou mão ao telefone ao mesmo tempo que se ia cobrindo mentalmente de insultos, sou uma besta, um estúpido, um idiota total, um imbecil, não passo de um cretino, como foi possível não ter pensado que a polícia me iria bater à porta, que interrogaria os vizinhos para averiguar se tenho parentes, que a vizinha de cima lhe daria a morada e o número do telefone da minha mãe, como foi possível esquecer-me de uma coisa que se metia pelos olhos dentro, como foi possível. Ninguém atendia de lá. O telefone tocava, tocava, mas ninguém apareceu a perguntar, Quem fala, para que finalmente Tertuliano Máximo Afonso pudesse responder, Sou eu, estou vivo, a polícia enganou-se, depois explico. A mãe não se encontrava em casa, e este facto, insólito noutra situação, só podia significar que vinha a caminho, que tinha alugado um táxi e vinha a caminho, talvez até já tivesse chegado, e, sendo assim, foi pedir a chave à vizinha de cima e agora está chorando o seu desgosto, pobre mãe, que bem me tinha avisado. Tertuliano Máximo Afonso marcou o número do seu telefone, e uma vez mais não lhe responderam. Esforçou-se por pensar serenamente, por aclarar a turvação do espírito, ainda que a polícia tivesse sido exemplarmente diligente precisou de tempo para realizar e concluir as investigações, há que recordar que esta cidade é um imenso formigueiro de cinco milhões de habitantes irrequietos, que são muitos os acidentes e os acidentados muitos mais, que é necessário identificá-los, ir depois à procura das famílias, tarefa nem sempre fácil porque há pessoas tão descuidadas que vão para a estrada sem ao menos um papel no bolso que previna, Se me suceder algum desastre, chamem fulano ou fulana de tal. Felizmente Tertuliano Máximo Afonso não é dessas pessoas, pelos vistos também Maria da Paz não o era, na agenda de cada um deles, na folhinha reservada aos dados pessoais, estava tudo quanto era necessário a uma identificação perfeita, pelo menos para as primeiras necessidades, que quase sempre acabam por ser as últimas. Ninguém que não fosse um fora-da-lei andaria a passear-se por aí com documentos falsos ou subtraídos a outra pessoa, donde é legítimo concluir, reportando-nos ao caso presente, que aquilo que pareceu à polícia o era de facto, tanto mais que, Dão havendo quaisquer motivos para duvidar da identidade de uma das vítimas, não se vê por que diabo de razão teria de havê-los em relação à outra. Tertuliano Máximo Afonso ligou novamente, e novamente não teve resposta. Já não pensa em Maria da Paz, agora o que quer saber é onde está Carolina Máximo, os táxis de hoje são máquinas potentíssimas, não as chocolateiras de antigamente, e, numa situação dramática como esta, nem seria preciso aliciar o condutor com a promessa de uma gratificação para que ele pisasse o acelerador, em menos de quatro horas deveria aqui estar, e, sendo este dia sábado e tempo de férias, com o trânsito nas ruas reduzido ao mínimo, ela já tinha mais do que obrigação de estar em casa para tranquilizar o desassossego deste filho. Tornou a ligar e, desta vez, sem que o esperasse, o gravador entrou em funcionamento, Fala Tertuliano Máximo Afonso, deixe o seu recado por favor, o choque foi fortíssimo, de tão perturbado que tem estado não se deu conta de que o mecanismo de gravação não havia entrado em acção antes, e agora foi como se de repente tivesse ouvido uma voz que não era sua, a voz de um morto desconhecido que amanhã vai ser necessário substituir pela de um vivo qualquer para que não impressione as pessoas sensíveis, operação de tirar-e-pôr que todos os dias é realizada milhares e milhares de vezes em todos os lugares do mundo, ainda que em tal não nos agrade pensar. Tertuliano Máximo Afonso precisou de alguns segundos para serenar e recuperar a sua própria voz, depois, trémulo, disse, Minha mãe, não é verdade o que lhe disseram, estou vivo e são, depois lhe explicarei o que se passou, repito, estou vivo e são, vou dar-lhe o nome do hotel em que me encontro hospedado, o número do quarto e o número do telefone, ligue assim que chegar aí, não chore mais, não chore mais, talvez Tertuliano Máximo tivesse dito terceira vez estas palavras, se ele próprio não tivesse rebentado em lágrimas, pela mãe, por Maria da Paz, cuja recordação aí estava outra vez, também por piedade de si mesmo. Exausto, deixou-se cair na cama, sentia-se fraco, débil como uma criança doente, lembrou-se de que não havia ali-doçado e a ideia, em vez de lhe despertar o apetite, provocou-lhe uma náusea tão violenta que teve de levantar-se e correr como pôde à casa de banho onde os sucessivos arrancos não lhe fizeram subir do estômago mais do que uma espuma amarga, Voltou ao quarto, sentou-se na cama com a cabeça entre as mãos deixando vogar o pensamento como um barquinho de cortiça que desce a corrente e de vez em quando, ao chocar com uma pedra, por um instante muda de rumo. Foi graças a este divagar meio consciente que se lembrou de algo importante que deveria ter comunicado à mãe. Ligou para casa pensando que a máquina lhe iria fazer outra vez a desfeita de não funcionar, e soltou um suspiro de alívio quando o gravador, após uns segundos de hesitação, deu sinal de vida. Usou poucas palavras para deixar o recado, disse apenas, Tome nota de que é António Claro o nome, não se esqueça, e depois, como se tivesse acabado de descobrir um elemento de peso para a definitiva elucidação das comutativas e instáveis identidades em liça, aditou a seguinte informação, O cão chama-se Tomarctus. Quando a mãe chegar já não precisará de lhe recitar os nomes do pai e dos avós, dos tios maternos e paternos, já não terá de falar do braço partido quando caiu da figueira, nem da sua primeira namorada, nem do raio que deitou abaixo a chaminé da casa quando ele tinha dez anos. Para que Carolina Afonso venha a ter a certeza absoluta de que diante de si se encontra o filho das suas entranhas não fará falta o maravilhoso instinto maternal nem as científicas provas confirmadoras do ADN, o nome de um simples cão bastará.

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