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A carta de António Claro chegou na sexta-feira. Acompanhando o croquis vinha uma nota manuscrita, não assinada e sem vocativo, que dizia, Encontramo-nos às seis da tarde, espero que possa encontrar o sítio sem dificuldade. A letra não é exactamente igual à minha, mas a diferença é mínima, onde mais se nota é na maiúscula, murmurou Tertuliano Máximo Afonso. O croquis mostrava uma saída da cidade, assinalava duas povoações separadas por oito quilómetros, uma de cada lado da estrada, e, entre elas, um caminho para a direita que se metia pelo campo até outra povoação, de menor importância que as outras a avaliar pelo desenho. Dali, outro caminho, mais estreito, ia deter-se, a cerca de um quilómetro de distância, numa casa. O que a assinalava era a palavra casa, não um desenho rudimentar, o esboço simples que a mais inábil das mãos é capaz de traçar, um telhado com a sua chaminé, uma frontaria com porta ao meio e uma janela de cada lado. Por cima da palavra, uma seta vermelha eliminava qualquer possibilidade de engano, Não vá mais longe. Tertuliano Máximo Afonso abriu uma gaveta, tirou um mapa da cidade e das áreas limítrofes, procurou e identificou a saída conveniente, aqui está a primeira povoação, o caminho que corta para a direita antes de chegar à segunda, a povoação pequena lá adiante, só lhe falta o acesso final. Tertuliano Máximo Afonso olhou outra vez o croquis, Se é uma casa, pensou, não vale a pena ir carregado com o espelho, encontram-se em todas as casas. Tinha imaginado que o encontro se daria num descampado, longe das vistas de curiosos, talvez mesmo sob a protecção de uma árvore frondosa, e afinal iria ser debaixo de telha, algo assim como um encontro entre gente conhecida, de copo na mão e frutos secos à disposição. Perguntou-se se a mulher de António Claro também iria, se iria lá estar para conferir o tamanho e a configuração das cicatrizes do joelho esquerdo, para medir o espaço entre os dois sinais do antebraço direito e a distância que os separa, a um, do epicôndilo, ao outro, dos ossos do carpo, e depois dizer Não saiam da minha vista para que não os confonda. Pensou que não, que não teria sentido ir um homem digno deste nome a um encontro potencialmente conflituoso, para não dizer chãmente arriscado, baste recordar que António Claro teve a atenção cavalheiresca de prevenir Tertuliano Máximo Afonso de que se apresentaria armado, e levar atrás de si a mulher, como para se esconder debaixo das saias dela ao menor sinal de perigo. Irá sozinho, eu também não levo a Maria da Paz, estas palavras desconcertantes pronunciou-as Tertuliano Máximo Afonso sem ter em conta a abissal diferença que há entre uma esposa legítima, exornada de todos os inerentes direitos e deveres, e uma ligação sentimental de temporada, por mais firme que a afeição da mencionada Maria da Paz nos tenha sempre parecido, já que do outro lado é lícito, se Dão obrigatório, duvidar. Tertuliano Máximo Afonso guardou o mapa e o croquis na gaveta, mas não o bilhete manuscrito. Pô-lo diante de si, pegou na caneta e escreveu toda a frase num papel, com uma caligrafia que procurava imitar o melhor possível a outra, principalmente a maiúscula, onde a diferença mais se notava. Continuou a escrever, repetiu a frase até cobrir toda a folha de papel, na última nem o mais experiente grafólogo seria capaz de descobrir o mais insignificante indício de falsificação, o que Tertuliano Máximo Afonso conseguiu naquela rápida cópia da assinatura de Maria da Paz não tem sombra de comparação com a obra de arte que acaba de produzir. A partir de agora só terá de averiguar como é que António Claro traça as maiúsculas de A a D e de F a Z, e logo aprender a imitá-las. Isto não significa, porém, que Tertuliano Máximo Afonso esteja a alimentar no seu espírito projectos de futuro que envolvam a pessoa do actor Daniel Santa-Clara, trata-se unicamente de dar satisfação, neste caso particular, a um gosto pelo estudo que o levou, jovem ainda, ao exercício público da benemerente actividade de magíster. Tal como é sempre possível que venha a ser de utilidade saber como se pode manter de pé um ovo, também não se deverá excluir que uma correcta imitação das maiúsculas de António Claro possa vir a servir para alguma coisa na vida de Tertuliano Máximo Afonso. Como ensinavam os antigos, nunca digas desta água não beberei, sobretudo, acrescentaremos nós, se não tiveres outra, Não tendo estas considerações sido formuladas por Tertuliano Máximo Afonso, não está em nosso poder esmiuçar a relação que ainda assim poderia existir entre elas e a decisão que ele acabou de tomar e a que alguma reflexão sua que não captámos certamente o conduziu. Esta decisão manifesta o carácter por assim dizer inevitável do óbvio, porquanto, dispondo Tertuliano Máximo Afonso do croquis que o guiará ao lugar onde se realizará o encontro, nada mais natural que ter-lhe ocorrido a ideia de ir inspeccionar primeiramente o sítio, de estudar-lhe as entradas e as saídas, de tomar-lhe as medidas, se a expressão é autorizada, com a vantagem adicional nada desdenhável de que, fazendo-o, evitará o risco de se perder no domingo. A perspectiva de que a pequena viagem o distrairia durante umas horas da penosa obrigação de redigir a proposta ao ministério, não só lhe desassombrou os pensamentos como, de maneira em verdade surpreendente, lhe desanuviou a cara. Tertuliano Máximo Afonso não pertence ao número dessas pessoas extraordinárias que são capazes de sorrir até quando estão sozinhas, o próprio dele inclina-se mais para o lado da melancolia, do ensimesmamento, de uma exagerada consciência da transitoriedade da vida, de uma incurável perplexidade perante os autênticos labirintos cretenses que são as relações humanas. Não compreende satisfatoriamente as razões do misterioso funcionamento de uma colmeia nem o que fez com que o ramo de uma árvore tivesse brotado onde e como brotou, isto é, nem mais acima, nem mais abaixo, nem mais grosso, nem mais delgado, mas atribui essa sua dificuldade de entendimento ao facto de ignorar os códigos de comunicação genética e gestual em vigor entre as abelhas e, mais ainda, os fluxos informativos que mais ou menos às cegas circulam pelas malhas da rede de auto-estradas vegetais que ligam as raízes afundadas no chão às folhas que revestem a árvore e na calma descansam ou ao vento se balouçam, O que de todo em todo não compreende, por muito que tenha posto a cabeça a trabalhar, é que, desenvolvendo-se em autêntica progressão geométrica, de melhoria em melhoria, as tecnologias de comunicação, a outra comunicação, a propriamente dita, a real, a de mim a ti, a de nós a vós, continue a ser esta confusão cruzada de becos sem saída, tão enganosa de ilusórias esplanadas, tão dissimulada quando expressa como quando trata de ocultar. A Tertuliano Máximo Afonso talvez não lhe importasse chegar a ser árvore, mas nunca o há-de conseguir, a sua vida, como a de todos os humanos vívidos e por viver, não experimentará jamais a suprema experiência do vegetal. Suprema, imaginamos nós, que até agora a ninguém foi dado ler a biografia ou as memórias de um carvalho, escritas pelo próprio. Preocupe-se pois Tertuliano Máximo Afonso com as coisas do mundo a que pertence, este de homens e de mulheres que vozeiam e alardeiam por todos os meios naturais e artificiais, e deixe os arbóreos em sossego, que a eles já lhes sobram as pragas fitopatológicas, a serra eléctrica e os fogos florestais. Preocupe-se também com a condução do carro que o leva ao campo, que o transporta para fora de uma cidade que é modelo perfeito das modernas dificuldades de comunicação, na versão tráfego de veículos e peões, mormente em dias como o de hoje, sexta-feira à tarde, com toda a gente a sair para o fim-de-semana. Tertuliano Máximo Afonso sai, mas logo voltará. O pior do trânsito já ficou para trás, a estrada por onde terá de seguir não é muito frequentada,, dentro de pouco tempo encontrar-se-á diante da casa em que António Claro, depois de amanhã, estará à sua espera. Leva colocada e bem ajustada a barba, não fosse que ao atravessar a última povoação alguém o chamasse pelo nome de Daniel Santa-Clara e o convidasse a tomar uma cerveja, se, como é de presumir, a casa que vem examinar é propriedade de António Claro ou foi por ele alugada, vivenda no campo, segunda residência, grande vida levam os actores secundários de cinema se já têm entrada em comodidades que ainda não há muitos anos eram privilégio de raros. Teme no entanto Tertuliano Máximo Afonso que o caminho estreito por onde chegará à casa e que agora se lhe apresentou diante não tenha mais que esse uso, quer dizer, se não continua para além dela ou se não há outras habitações perto, então a mulher que assomou à janela estará a perguntar-se, ou em voz alta à vizinha do lado, Para onde irá aquele carro, que eu saiba não há ninguém em casa do senhor António Claro, e a cara daquele homem não me agrada nada, quem usa barba é porque tem alguma coisa a esconder, ainda bem que Tertuliano Máximo Afonso não a ouviu, passaria a ter outra séria razão para se inquietar. No caminho de macadame quase não cabem dois carros, não se deverá transitar muito por aqui. Do lado esquerdo, o terreno pedregoso desce pouco a pouco para um vale onde um extenso e ininterrupto renque de árvores altas, que a esta distância se dirá ser formado por freixos e choupos, assinala provavelmente a margem de um rio. Mesmo à velocidade prudente a que vai Tertuliano, Máximo Afonso, não seja que pela frente lhe apareça outro carro, um quilómetro vence-se em um nada, e este já está vencido, a casa deve ser aquela. O caminho continua, serpenteia na encosta de duas colinas encavaladas e desaparece do outro lado, o mais provável que sirva outras habitações que daqui não se alcançam a ver, afinal a mulher desconfiada só parece preocupar-se com o que está perto da povoação onde vive, o que esteja para lá das suas fronteiras não lhe interessa. Do terrapleno que se alarga diante da casa desce em direcção ao vale um outro caminho ainda mais estreito e com o piso em pior estado, Será outra maneira de chegar cá, pensou Tertuliano Máximo Afonso. Está consciente de que não deverá aproximar-se demasiado da vivenda, não vá algum passeante, ou pastor de cabras, que tem cara de havê-las aqui, soltar o alarme, Acudam que é ladrão, e em dois tempos aparecer aí a autoridade policial, ou na falta dela um destacamento de vizinhos armados de chuços e foices, à antiga. Tem de comportar-se como um via ante de passagem que parou um minuto para contemplar o panorama e que, já que ali está, deita um olhar apreciativo a uma casa cujos donos, agora ausentes, têm a sorte de desfrutar desta magnífica vista. A vivenda é simples, de andar único, uma típica habitação rural com todo o aspecto de haver beneficiado de um restauro criterioso, mas dando alguns sinais de abandono, como se os proprietários viessem por cá pouco e por pouco tempo de cada vez. O que se espera de uma casa no campo é que tenha plantas à porta e nos parapeitos das janelas, e esta mal as pode mostrar já, apenas uns talos meio secos, uma flor que se despede, só uma corajosa sardinheira ainda luta contra a ausência. A casa está separada do caminho por um muro baixo, e por trás dela, levantando as ramadas sobre o telhado, há dois castanheiros que, pela altura e pela longeva idade que não é difícil supor-lhes, devem ser muito anteriores à construção. Um sítio solitário, ideal para pessoas contemplativas, daquelas que amam a natureza pelo que ela é, sem fazer mais diferença entre o sol e a chuva, entre o calor e o frio, entre o vento e a calma, que a comodidade que nos dão uns e outros nos recusam. Tertuliano Máximo Afonso deu a volta pelas traseiras da casa, por um jardim que em tempos teria merecido esse nome e agora não passa de um espaço mal murado, invadido por cardos e uma maranha de plantas bravas que afogam uma macieira atrofiada e um pessegueiro com o tronco coberto de líquenes, umas quantas figueiras-do-inferno, ou estramónios, que é a palavra culta. Para António Claro, talvez também para a mulher, a casa rural deve ter sido um amor de pouca duração, uma daquelas paixonetas bucólicas que atacam por vezes os citadinos e que, como a palha solta, ardem com força mal se lhes chega um fósforo, e logo não são mais que cinzas negras. Tertuliano Máximo Afonso já pode regressar ao seu segundo andar com vista para o outro lado da rua e esperar a chamada telefónica que o fará voltar aqui no domingo. Meteu-se no carro, desandou por onde tinha vindo e, para mostrar à mulher da janela que não lhe pesava na consciência nenhum delito contra a propriedade alheia, atravessou com repousado vagar a povoação, conduzindo como se estivesse a abrir caminho por entre um rebanho de cabras acostumadas a usar as ruas com a mesma tranquilidade com que vão pastar ao campo, entre as giestas e os tomilhos. Tertuliano Máximo Afonso pensou se valeria a pena, só por satisfazer a curiosidade, procurar o atalho que, diante da casa, parecia descer em direcção ao rio, mas reconsiderou a tempo a ideia, quanto menos pessoas o vissem nestes sítios, melhor. Também é certo que depois de domingo nunca mais aqui voltará, mas sempre seria preferível que ninguém viesse a lembrar-se do homem das barbas. À saída da povoação acelerou, em poucos minutos estava na estrada principal, e menos de uma hora depois entrava em casa. Tomou um banho que o retemperou da soalheira da viagem, mudou de roupa, e, acompanhado de um refresco de limão que tirara do frigorífico, sentou-se à secretária, Não vai continuar a trabalhar na proposta para o ministério, vai, como bom filho, telefonar à mãe. Perguntar-lhe-á como tem passado, ela dirá que bem, e tu como estás, na forma do costume, sem razões de queixa, já andava a estranhar o silêncio, desculpe, é que tenho tido muito que fazer, supõe-se que estas palavras, nos seres humanos, são o equivalente daqueles rápidos toques de reconhecimento que as formigas fazem umas às outras com as antenas quando se topam no carreiro, como se dissessem, És dos meus, já podemos começar a tratar de coisas sérias. E como estão os teus problemas, perguntou a mãe, Vão a caminho de resolver-se, não se preocupe, Que ideia, como se eu não tivesse mais nada que fazer na vida senão preocupar-me, Ainda bem que não toma o assunto demasiado a peito, É porque não vês a minha cara, Vamos, mãe, sossegue, Espero sossegar quando cá estiveres, Já não falta muito tempo, E a tua relação com Maria da Paz, em que pé está neste momento, Não é fácil explicar, Pelo menos, poderás experimentar, É verdade que gosto dela e preciso dela, Outros têm casado com menos razões, Sim, mas percebo que a necessidade é apenas coisa de um momento, nada mais que isso, se amanhã deixar de a sentir, que faço, E o gostar, O gostar é o natural em um homem que vivia só e teve a sorte de conhecer uma mulher simpática, de aspecto agradável, com boa figura e, como é costume dizer-se, de bons sentimentos, Portanto, pouco, Não digo que seja pouco, digo que não é bastante, Amaste a tua mulher, Não sei, não me lembro, já passaram seis anos, Seis anos não dão para esquecer assim tanto, Pensei que a amava, ela deve ter pensado o mesmo a meu respeito, afina) estávamos equivocados os dois, é o que mais se encontra por aí, E não queres que com Maria da Paz venha a acontecer um engano idêntico, Não, não quero, Por ti, ou por ela, Por ambos, Mais por ti do que por ela. em todo o caso, Não sou perfeito, será suficiente que a poupe a ela o que não quero que de mau me suceda a mim, o meu egoísmo, neste caso, não vai ao ponto de não ser capaz de a defender também a ela, Talvez Maria da Paz não se importasse de arriscar, Outro divórcio, o meu segundo, o primeiro para ela, não, minha mãe, nem pensar, Ao fim poderia sair bem, não sabemos tudo do que nos espera para além de cada acção nossa, Assim é, Por que o dizes dessa maneira, Que maneira, COM se estivéssemos às escuras e tivesses acendido e apagado uma luz de repente, Foi impressão sua, Repete, Repito, o quê, O que disseste, Para que, Repete, peço-te, Faça-se a sua vontade, assim é, Diz só as duas palavras, Assim é, Não foi o mesmo, Como não foi o mesmo, Não foi o mesmo, Ora, minha mãe, deixe-se de fantasias, por favor, fantasiar em demasia não é o melhor caminho para a paz do espírito, as palavras que eu disse não significam mais que assentimento, concordância, Até aí alcançam as minhas luzes, no tempo em que era nova também consultei dicionários, Não se zangue, Quando vens, Já lhe disse, em breve, Precisamos de ter uma conversa, Teremos todas as conversas que quiser, Só quero uma, Qual, Não finjas que não percebes, quero saber o que se passa contigo, e por favor não me venhas para cá com histórias preparadas, jogo franco e cartas na mesa é o que espero de ti, Essas palavras não parecem suas, Eram muito do teu pai, lembra-te, Porei as cartas todas na mesa, E prometes-me que o jogo será franco, sem truques, Será franco, não haverá truques, Assim é que eu quero o meu filho, Vamos a ver o que terá para me dizer quando lhe puser diante a primeira carta deste baralho, Julgo que já vi tudo quanto havia para ver na vida, Fique-se corri essa ilusão enquanto não falarmos, É assim tão sério, O futuro o dirá quando lá chegarmos, Não tardes, por favor, Talvez esteja aí a meio da semana que vem, Oxalá, Um beijo, minha mãe. Um beijo, meu filho. Tertuliano Máximo Afonso pousou o auscultador, depois deixou vagar o pensamento à vontade, como se continuasse a falar com a mãe, As palavras são o diabo,, nós a crer que só deixamos sair da boca para fora aquelas que nos convêm, e de repente aparece uma que se mete pelo meio, não vimos de onde surgiu, não era para ali chamada, e, por causa dela, que não é raro termos depois dificuldade em recordar, o rumo da conserva muda bruscamente de quadrante, passamos a afirmar o que antes negávamos, ou vice-versa, isto que acabou de acontecer aqui foi o melhor dos exemplos, não era intenção minha falar tão cedo à minha mãe desta história de loucos, se é que realmente pensava fazê-lo alguma vez, e de um instante para outro, sem se perceber como, ela passou a ter a promessa formal de que lha contarei, neste minuto, provavelmente, está a marcar uma cruz no calendário, já na segunda-feira da semana que entra, não seja o caso de eu aparecer lá sem ser esperado, conheço-a, cada dia que ela assinalar é o dia em que eu teria obrigação de chegar, a culpa não será sua, se falto. Tertuliano Máximo Afonso não está contrariado, pelo contrário, goza uma indescritível sensação de alívio, como se de súbito lhe tivessem retirado um peso de cima dos ombros, pergunta-se que é que ganhou afinal em ter guardado silêncio durante todos estes dias e não acha uma só resposta justa, daqui a pouco talvez seja capaz de dar mil explicações, cada uma mais plausível que outra, agora só pensa que necessita desafogar-se o mais rapidamente possível, terá o encontro com António Claro no domingo, daqui a dois dias, só se não quiser é que não pega no carro logo na segunda-feira de manhã e vai mostrar à mãe todas as cartas que compõem este quebra-cabeças, verdadeiramente todas, porque uma coisa seria ter-lhe dito há tempos, Existe um homem tão parecido comigo que até a mãe nos confundiria, e outra, muito diferente, será ter de dizer-lhe, Estive com ele, e agora não sei quem sou. Neste mesmo instante, sumiu-se a breve consolação que caridosamente o tinha estado embalando e, em vez dela, como uma dor que de repente se fizesse lembrar, o medo reapareceu. Não sabemos tudo do que nos espera para além de cada acção nossa, havia dito a mãe, e esta verdade corriqueira, ao alcance de uma simples dona de casa de província, esta verdade trivial que faz parte da infinita lista das que não vale a pena perder tempo a enunciar porque já a ninguém tiram o sono, esta verdade de todos e igual para todos pode, em algumas situações, afligir e assustar tanto como a pior das ameaças. Cada segundo que passa é como uma porta que se abre para deixar entrar o que ainda não sucedeu, isso a que damos o nome de futuro, porém, desafiando a contradição com o que acabou de ser dito, talvez a ideia correcta seja a de que o futuro é somente um imenso vazio, a de que o futuro não é mais que o tempo de que o eterno presente se alimenta. Se o futuro está vazio, pensou Tertuliano Máximo Afonso, então não existe nada a que possa chamar domingo, a sua eventual existência depende da minha existência, se eu neste momento morresse, uma parte do futuro ou dos futuros possíveis ficaria para sempre cancelada. A conclusão x que Tertuliano Máximo Afonso ia chegar, Para que o domingo exista na realidade é preciso que eu continue a existir, foi bruscamente cortada pelo toque do telefone. Era António Claro a perguntar, Recebeu o croquis, Recebi, Tem alguma dúvida, Nenhuma, Fiquei de lhe telefonar amanhã, mas pensei que a carta já devia ter chegado, e portanto venho confirmar o encontro, Muito bem, lá estarei às seis horas, Não se preocupe com o facto de ter de atravessar a povoação, eu usarei um atalho que me leva directamente à casa, assim ninguém terá de estranhar a passagem de duas pessoas com a cara igual, E o automóvel, Qual, O meu, Não tem importância, se houver alguém que o confunda comigo pensará que mudei de carro, aliás, ultimamente, tenho ido poucas vezes à casa, Muito bem, Até depois de amanhã, Até domingo. Depois de desligar, Tertuliano Máximo Afonso pensou que lhe poderia ter dito que levaria uma barba postiça. Também não tem importância, tirá-la-á logo a seguir. O domingo deu um grande passo em frente, Eram seis horas e cinco 'minutos quando Tertuliano Máximo Afonso arrumou o carro em frente da casa, do outro lado do caminho. O automóvel de António Claro já ali está, junto à entrada, encostado ao muro. Entre um e outro há a diferença de uma geração mecânica, nunca Daniel Santa-Clara teria trocado o seu carro por algo que a este de Tertuliano Máximo Afonso se assemelhasse. A cancela está aberta, a porta da casa também, mas as janelas estão fechadas. No interior percebe-se um vulto que quase não se distingue de fora, porém a voz que sai lá de dentro é nítida e precisa, como deve ser a de um artista de platô, Entre, faça de conta que está em sua casa. Tertuliano Máximo Afonso subiu os quatro degraus da escada de acesso e parou no limiar. Entre, entre, repetiu a voz, não faça cerimónia, ainda que, pelo que vejo, não me pareça ser você a pessoa de quem estava à espera, supunha que era eu o actor, mas enganei-me. Sem dizer palavra, com todos os cuidados, Tertuliano Máximo Afonso despegou a barba e entrou. Eis o que se chama ter o sentido teatral do dramático, fez-me lembrar aquelas personagens que aparecem de rompante a exclamar Aqui estou, como se isso tivesse alguma importância, disse António Claro, enquanto emergia da penumbra e aparecia à luz plena que entrava pela porta aberta. Ficaram parados a olhar-se. Lentamente, como se lhe fosse penoso arrancar-se desde o mais fundo do impossível, a estupefacção desenhou-se no rosto de António Claro, não no de Tertuliano Máximo Afonso, que já sabia o que vinha encontrar. Sou a pessoa que lhe telefonou, disse, estou aqui para que se certifique, pelos seus próprios olhos, de que não pretendia divertir-me à sua custa quando lhe dizia que éramos iguais, Efectivamente, balbuciou António Claro numa voz que já não parecia a de Daniel Santa-Clara, imaginei, por causa da sua insistência, que houvesse entre nós uma semelhança grande, mas confesso-lhe que não estava preparado para o que tenho diante de mim, o meu próprio retrato, Agora que já tem a prova, poderei retirar-me, disse Tertuliano Máximo Afonso, Não, isso não, pedi-lhe que entre, agora peço-lhe que nos sentemos a conversar, a casa anda um pouco descuidada, mas estes sofás estão em bom estado e devo ter ainda por aí umas bebidas, gelo é que não há, Não quero dar-lhe trabalho, Ora essa, iria ser mais bem atendido se a minha mulher tivesse vindo, mas não é difícil imaginar como ela estaria a sentir-se neste momento, mais confusa e perturbada que eu, isso com certeza, Julgando por mim próprio, não tenho quaisquer dúvidas, o que tive de viver nestas semanas não o desejaria ao meu pior inimigo, Sente-se, por favor, que prefere para beber, uísque ou conhaque, Sou pouco bebedor, mas mesmo assim prefiro o conhaque, uma gota, nada mais. António Claro trouxe as garrafas e os copos, serviu o visitante, deitou para si três dedos de uísque sem água, depois sentou-se do outro lado da pequena mesa que os separava. Não caio em mim de assombro, disse, Eu já passei por essa fase, respondeu Tertuliano Máximo Afonso, agora só me pergunto que irá acontecer depois disto, Como foi que descobriu, Disse-lho quando lhe telefonei, vi-o num filme, Sim, já me lembro, aquele em que fiz de recepcionista de hotel, Exactamente, Depois viu-me noutros filmes, Exactamente, E como foi que conseguiu chegar até mim, se o nome de Daniel Santa-Clara não vem na lista telefónica, Antes disso ainda tive de encontrar a maneira de o identificar entre os diversos actores secundários que aparecem nos genéricos sem referência à personagem que interpretavam, Tem razão, Levou tempo, mas alcancei o que queria, E por que foi que se deu a esse trabalho, Creio que qualquer outra pessoa no meu lugar teria feito o mesmo, Suponho que sim, o caso era demasiado extraordinário para que não se lhe desse importância, Telefonei às pessoas de apelido Santa-Clara que vinham na lista, Disseram-lhe que não me conheciam, evidentemente, Sim, no entanto uma delas lembrou-se de que era a segunda vez que alguém lhe telefonava a perguntar por Daniel Santa-Clara, Que outra pessoa, antes de você, tinha perguntado por mim, Sim, Seria alguma admiradora, Não, um homem, É estranho, Mais estranho ainda foi ter-me dito que o homem parecia querer disfarçar a voz, Não percebo, por que a disfarçaria ele, Não tenho nenhuma ideia, Pode ter sido impressão da pessoa com quem falou, Talvez, E como foi que finalmente deu comigo, Escrevi à empresa produtora, Surpreende-me que o tenham informado da minha direcção, Também me deram o seu verdadeiro nome, Julguei que só o sabia da primeira conversa que teve com a minha mulher, Disse-mo a empresa, No que me diz respeito, pelo menos que seja do meu conhecimento, foi a primeira vez que o fizeram, Meti na carta um parágrafo a falar da importância dos actores secundários, suponho que isso os terá convencido, O mais natural teria sido precisamente o contrário, Ainda assim, consegui-o, E aqui estamos, Sim, aqui estamos. António Claro bebeu um trago de uísque, Tertuliano Máximo Afonso molhou os lábios no conhaque, depois olharam-se, e no mesmo instante desviaram a vista. Pela porta que continuava aberta entrava a luz declinante da tarde. Tertuliano Máximo Afonso afastou o seu copo para o lado e espalmou as duas mãos sobre o tampo da mesa, com os dedos esticados, em estrela, Comparemos, disse. António Claro tomou outro trago de uísque e colocou as suas em simetria com as dele, pressionando-as contra a mesa para não se perceber que tremiam. Tertuliano Máximo Afonso dava a impressão de estar a fazer o mesmo. As mãos eram em tudo iguais, cada veia, cada ruga, cada pêlo, as unhas uma por uma, tudo se repetia como se tivesse saído de um molde. A única diferença era a aliança de ouro que António Claro usava no dedo anelar esquerdo. Vejamos agora os sinais que temos no antebraço direito, disse Tertuliano Máximo Afonso. Levantou-se, despiu o casaco, que deixou cair no sofá, e arregaçou a manga da camisa até ao cotovelo. António Claro também se tinha levantado, mas foi primeiro fechar a porta e acender as luzes da sala. Ao colocar o casaco no espaldar de uma cadeira, não pôde evitar um ruído surdo. É a pistola, perguntou Tertuliano Máximo Afonso, É, Pensei que tivesse decidido não a trazer, Não está carregada, Não está carregada são só três palavras que dizem não está carregada, Quer que lha mostre, já que parece não acreditar em mim, Faça como quiser. António Claro meteu a mão numa algibeira interior do casaco e exibiu a arma, Aqui está. Em movimentos rápidos, eficazes, retirou o carregador vazio, fez recuar a culatra e mostrou a câmara, vazia também. Ficou convencido, perguntou, Fiquei, E não suspeita que eu tenha outra pistola no outro bolso, Já seriam pistolas demasiadas, Seriam as necessárias se eu tivesse planeado ver-me livre de si, E por que haveria o actor Daniel Santa-Clara de querer ver-se livre do professor de História Tertuliano Máximo Afonso, Você mesmo pôs o dedo na ferida quando se perguntou o que irá acontecer depois disto, Estava disposto a ir-me embora, foi você que me disse que ficasse, É certo, mas a sua retirada nada teria resolvido, aqui, ou em sua casa, ou a dar as suas aulas, ou a dormir com a sua mulher, Não sou casado, Você seria sempre a minha cópia, o meu duplicado, uma imagem permanente de mim mesmo num espelho em que eu não me estaria olhando, algo provavelmente insuportável, Dois tiros resolveriam a questão antes que ela se apresentasse, Assim é, Mas a pistola está descarregada, Exacto, E não há outra no outro bolso, Precisamente, Portanto voltamos ao principio, não sabemos o que irá suceder depois disto. António Claro já tinha puxado a manga da camisa para cima, à distância a que se encontravam um do outro não se percebiam bem os sinais na pele, mas, quando se aproximaram de uma luz, eles apareceram, nítidos, precisos, iguais. Isto parece um filme de ficção científica escrito, dirigido e interpretado por clones às ordens de um sábio louco, disse António Claro, Ainda temos a cicatriz do joelho para ver, lembrou Tertuliano Máximo Afonso, Não creio que mereça a pena, a prova está mais do que feita, mãos, braços, caras, vozes, tudo em nós é igual, só faltaria que nos despíssemos por completo. Tomou a servir-se de uísque, olhou o líquido como se esperasse que dali pudesse emergir alguma ideia, e de repente perguntou, E por que não, sim, e por que não, Seria caricato, você mesmo acabou de dizer que a prova já está feita, Caricato, porquê, da cintura para cima ou da cintura para cima e para baixo, nós, os actores de cinema, e de teatro também, quase não fazemos mais que despir-nos, Não sou actor, Não se dispa, se não quiser, mas eu vou fazê-lo, não me custa nada, estou mais do que habituado, e, se a igualdade se repetir no corpo todo, você estará a ver-se a si mesmo quando me olhar a mim, disse António Claro. Despiu a camisa num só movimento, descalçou-se e tirou as calças, depois a roupa interior, finalmente as meias. Estava nu da cabeça aos pés e era, da cabeça aos pés, Tertuliano Máximo Afonso, professor de História. Então Tertuliano Máximo Afonso pensou que não podia ficar atrás, que tinha de aceitar o repto, levantou-se do sofá e começou também a despir-se, mais contido nos gestos por causa do pudor e da falta de hábito, mas, quando terminou, um pouco encolhida a figura devido ao acanhamento, tinha-se tomado em Daniel Santa-Clara, actor de cinema, com a única excepção visível dos pés, porque não chegara a descalçar as peúgas. Olharam-se em silêncio, conscientes da total inutilidade de qualquer palavra que proferissem, presas de um sentimento confuso de humilhação e perda que arredava o assombro que seria a manifestação natural, como se a chocante conformidade de um tivesse roubado alguma coisa à identidade própria do outro. O primeiro a acabar de vestir-se foi Tertuliano Máximo Afonso, Ficou de pé, com a atitude de quem pensa que é chegada a altura de se retirar, mas António Claro disse, Peço-lhe o favor de se sentar, há ainda um último ponto que gostaria de aclarar consigo, não o reterei por muito tempo mais, De que se trata, perguntou Tertuliano Máximo Afonso enquanto, com relutância, voltava a sentar-se, Refiro-me às datas em que nascemos, e também às horas, disse António Claro, enquanto tirava do bolso do casaco a carteira e, do interior desta, um documento de identificação, que estendeu a Tertuliano Máximo Afonso por cima da mesa. Este olhou-o rapidamente, devolveu-o e disse, Nasci nessa mesma data, ano, mês e dia, Não ficará ofendido se lhe pedir que me mostre a sua identificação, De modo algum. O cartão de Tertuliano Máximo Afonso passou às mãos de António Claro, onde se demorou dez segundos, e regressou ao seu proprietário, que perguntou, Dá-se por satisfeito, Ainda não, ainda falta conhecer as horas, a minha ideia é que as escrevamos num papel, cada um no seu, Porquê, Para que o segundo a falar, se essa fosse a maneira escolhida, não cedesse à tentação de subtrair quinze minutos da hora que tivesse sido declarada pelo primeiro, E por que não aumentar esses quinze minutos, Porque qualquer aumento iria contra os interesses do segundo que falasse, O papel não garante a seriedade do processo, ninguém poderia impedir-me de escrever, isto não passa de um exemplo, que nasci no primeiro minuto do dia, quando não foi assim na realidade, Teria mentido, Pois teria, mas qualquer de nós, desde que o queira, pode sempre faltar à verdade mesmo que nos limitemos, sem mais, a dizer em voz alta a hora a que nascemos, Tem razão, é uma questão de rectidão e boa-fé. Tertuliano Máximo Afonso tremia por dentro, desde o princípio de tudo tinha a certeza de que este momento haveria de chegar, só não tinha imaginado que viesse a ser ele próprio quem o convidaria a manifestar-se, a romper o último selo, a revelar a única diferença, Sabia de antemão qual iria ser a resposta de António Claro, mas mesmo assim perguntou, E que importância terá dizermos um ao outro a hora a que viemos ao mundo, A importância que irá ter é que ficaremos a saber qual de nós dois, você ou eu, é o duplicado do outro, E que sucederá a um e a outro pelo facto de o sabermos, Disso não tenho a menor ideia, porém, a minha imaginação, os actores também são dotados de alguma, diz-me que, no mínimo, não deverá ser cómodo viver sabendo-se duplicado de outra pessoa, E está disposto, pela sua parte, a arriscar-se, Mais que disposto, Sem mentir, Espero que não seja necessário, respondeu António Claro com um sorriso estudado, uma composição plástica de lábios e dentes onde, em doses idênticas e indiscerníveis, se reuniam a franqueza e a maldade, a inocência e o descaro. Depois acrescentou, Naturalmente, se prefere, poderemos tirar à sorte aquele a quem caberá falar em primeiro lugar, Não é preciso, eu começo, você mesmo referiu que é uma questão de rectidão e boa-fé, disse Tertuliano Máximo Afonso, Nasceu então a que horas, Às duas da tarde. António Claro pôs uma cara de pena e disse, Eu nasci meia hora antes, ou, para falar com absoluta exactidão cronométrica, pus a cabeça de fora às treze horas e vinte e nove minutos, lamento-o, meu caro, mas eu já cá estava quando você nasceu, o duplicado é você. Tertuliano Máximo Afonso engoliu de um trago o resto do conhaque, levantou-se e disse, Foi a curiosidade que me trouxe a este encontro, agora que já está satisfeita, retiro-me, Homem, não se vá embora tão depressa, conversemos um pouco mais, ainda não é tarde, e até, se não tem outro compromisso a chamá-lo, podíamos jantar juntos, aqui perto há um bom restaurante, com a sua barba não haveria perigo, Obrigado pelo convite, mas não aceito, teríamos com certeza pouca coisa para dizer um ao outro, a si não creio que lhe interesse a História, e eu estou curado de cinema para os anos mais próximos, Ficou contrariado pelo facto de não ter sido o primeiro a nascer, de que seja eu o original e você o duplicado, Contrariado não será a palavra justa, simplesmente preferia que não tivesse acontecido assim, mas não me pergunte porquê, seja como for não perdi tudo, ainda ganhei uma pequena compensação, Que compensação, A de que você não lucraria nada em andar pelo mundo a gabar-se de ser o original de nós dois se o duplicado que eu sou não estivesse à vista para as necessárias comprovações, Não tenciono espalhar aos quatro ventos esta história incrível, sou um artista de cinema, não um fenómeno de feira, E eu um professor de História, não um caso teratológico, Estamos de acordo, Não há, portanto, qualquer razão para que nos voltemos a encontrar, Também creio que não, Não me resta mais, por conseguinte, que desejar-lhe as maiores felicidades no desempenho de um papel de que não irá tirar qualquer vantagem, uma vez que não haverá público a aplaudi-lo, e prometer-lhe que este duplicado se manterá fora do alcance da curiosidade científica, mais do que legítima, e da cuscovilhice jornalística, que não o é menos, porquanto disso vive, suponho que já terá ouvido dizer que o costume faz lei, se assim não fosse, posso assegurar-lhe que o código de Hamurabi não teria sido escrito, Manter-nos-emos afastados, Numa cidade tão grande como esta em que vivemos não será nada difícil, além disso, as nossas vidas profissionais são tão diferentes que nunca eu teria sabido da sua existência se não fosse aquele malfadado filme, quanto à probabilidade de que um actor de cinema viesse a interessar-se por um professor de História, essa nem sequer deve ter expressão matemática, Nunca se sabe, a probabilidade de que existíssemos tais quais somos era zero, e no entanto aqui estamos, Tentarei imaginar que não vi o filme, esse e os seguintes, ou então recordar só que suportei um longo e agónico pesadelo, para ao fim perceber que não era caso para tanto, um homem igual a outro, que importância tem, se quer que lhe fale francamente, a única coisa que me preocupa realmente neste momento é se, tendo nós nascido no mesmo dia, também num mesmo dia iremos morrer, Não vejo a que propósito vem agora semelhante preocupação, A morte sempre vem a propósito, Você dá a impressão de sofrer de uma obsessão mórbida, quando me telefonou disse as mesmas palavras, e também sem vir a propósito, Nessa altura saíram-me sem pensar, foi uma dessas frases fora de lugar e de contexto que se metem na conversa sem que as tivéssemos chamado, Não foi o caso de agora, Incomoda-o, Não me incomoda nada, Talvez o passe a incomodar se lhe der conta de uma ideia que acabou de me ocorrer, Que ideia foi essa, A de que, se somos tão iguais quanto hoje nos foi dado verificar, a lógica identitária que parece unir-nos determinará que você terá de morrer antes de mim, precisamente trinta e um minutos antes de mim, durante trinta e um minutos o duplicado ocupará o espaço do original, será original ele próprio, Desejo-lhe que viva bem esses trinta e um minutos de identidade pessoal, absoluta e exclusiva, porque a partir de agora não vai ter outros, É simpático da sua parte, agradeceu Tertuliano Máximo Afonso. Colocou a barba com todo o esmero, comprimindo-a delicadamente com as pontas dos dedos, já não lhe tremiam as mãos, deu as boas-tardes e encaminhou-se para a porta. Ali parou de repente, voltou-se e disse, Ah, tinha-me esquecido o mais importante, todas as provas ficaram feitas, excepto uma, Qual, perguntou António Claro, A prova do ADN, a análise da codificação da nossa informação genética, ou, em palavras mais simples, ao alcance de qualquer inteligência, o tira-teimas, a prova dos noves, Isso nem pensar, Tem razão, teríamos de ir os dois ao laboratório de genética, de mãos dadas, para que nos aparassem uma unha ou nos extraíssem uma gota de sangue, e então, sim, saberíamos se esta igualdade não passa de uma casual coincidência de cores e formas exteriores, ou se somos a demonstração duplicada, em original e em duplicado, quero dizer, de que a impossibilidade era a última ilusão que nos restava, Considerar-nos-iam como casos teratológicos, Ou como fenómenos de feira, E isso seria insuportável para ambos, Nada mais exacto, Ainda bem que estamos de acordo, Em algo teria de ser, Boas tardes, Boas tardes.

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